A ignorância sai caríssima. E semeia-se.
E combate-se.
Os primeiros subscritores desta Carta (18 de Abril de 2018) são
- José Antunes Ribeiro (editor-livreiro na Espaço Ulmeiro Associação Cultural, ex-fundador da Assírio & Alvim e da Ulmeiro)
- Assírio Bacelar (editor na Nova Vega, ex-fundador da Assírio & Alvim)
- Daniel Melo (historiador, investigador em política cultural e história do livro e da leitura).
Soube da petição pelo Facebook. O digital não é desculpa para não aderir a esta Carta, antes pelo contrário. Vale a pena antes de mais ler o que aqui se escreve, pensar no que nela se destaca e se propõe. Reparar melhor no que se passa à nossa volta, pensar no que nela se diz e se avança. E depois agir.
1.2. O desinvestimento na leitura pública como ameaça ao desenvolvimento cultural Uma política do livro democrática e sustentável tem necessariamente que se articular com uma política da leitura. A sustentabilidade impõe que se promova diariamente a diversidade cultural, para atenuar efeitos nefastos advindos da concentração e homogeneização. A diversidade cultural tornou-se uma prioridade consagrada em inúmeros documentos internacionais desde os anos 1970, da UNESCO [1] ao Conselho da Europa e à comunidade ibero-americana.CARTA ABERTA PARA SAIR DA CRISE NO SECTOR DO LIVRO E DA LEITURA : Petição Pública
Nas últimas décadas, tem-se verificado a nível planetário que a redução da diversidade no sector do livro corrói o pluralismo de pontos de vista, experiências e criações, enfraquece o debate público e a experiência humana, debilita a capacidade emancipatória dos cidadãos e das suas comunidades. Como antídoto impôs-se a ideia da bibliodiversidade, que surgiu nos anos 1990, e a qual necessita da articulação entre políticas do livro e da leitura, e entre Estados e sociedades civis organizadas.
Mas não basta abraçar ideias, impõe-se dar-lhes conteúdo prático, na aplicação das políticas públicas nos vários níveis do Estado, envolvendo e responsabilizando os cidadãos e suas organizações.
Em Portugal, um dos pilares duma política integrada do livro e da leitura têm sido as bibliotecas públicas municipais. Ora, estas atravessam uma crise grave que urge solucionar. A crise liga-se a severas restrições orçamentais mas é, acima de tudo, um problema programático. Que fins se pretendem atingir? Que resultados se têm atingido? Que meios se devem mobilizar?
Desde logo, em muitas bibliotecas não têm sido devidamente acautelados os seus fundos bibliográficos. As novidades tardam, e parte do atraso deve-se a ainda não ser sistemática a “catalogação na fonte” dos livros, o que evitaria a duplicação de trabalho e impõe um urgente reforço de meios específicos. Diversas juntas de freguesia e municípios deixaram de investir na actualização consistente da oferta de livros nas suas bibliotecas. O investimento parece ter sido desviado para o livro escolar, o que esvazia as bibliotecas locais. Além disso, há bibliotecas municipais que têm fundos preciosos de livros de autores portugueses dos séculos XIX e XX que estão em depósitos distantes, sob o pretexto de que estas bibliotecas só devem disponibilizar livros novos, quando o que devem é assegurar uma oferta o mais generalista possível, incluindo quanto a autores e edições mais recuadas. As reedições que se vão fazendo não cobrem tudo, há que atender públicos diversificados (incluindo os que necessitam de pesquisar, cada vez mais um requisito do próprio ensino, básico e superior), e nem todas as obras relevantes podem ser contempladas no orçamento bibliotecário.
Outro problema grave prende-se com o incumprimento da missão integral por estas bibliotecas, a que estão obrigadas dado o lugar central que detém nas respectivas comunidades, enquanto pólos culturais e educativos.
Como sustenta o Conselho da Europa desde 1970, a cultura não é somente bens de consumo, mas sobretudo um espaço no qual os cidadãos podem formar a sua própria cultura, posição que foi reiterada por resolução da 1.ª Conferência de Ministros Europeus responsáveis pelos Assuntos Culturais, em 1976.
Por isso, torna-se imperioso inverter o profundo desinvestimento em actividades culturais promotoras do livro e da leitura, da hora do conto à declamação de poesia e às oficinas artísticas. São estas e outras iniciativas afins que colocam em interacção os cidadãos com actores sociais e culturais diversos, permitindo e suportando a criação, a difusão e o pluralismo culturais, mas também a integração e coesão socioculturais. Para tal efeito, é crucial dotar estas iniciativas de recursos próprios, para acabar de vez com o mau hábito de se considerar que o trabalhador intelectual e artístico deve intervir nestes espaços a título gracioso. Só assim será possível respeitar a sua dignidade profissional e reforçar as vias de produção, participação e circulação culturais e de integração sociocomunitária. E só assim também se porá cobro ao financiamento de actividades culturais pelos próprios funcionários das bibliotecas (em dinheiro para materiais, em combustível para deslocações, em horas extraordinárias não pagas, etc.), um abuso do seu espírito de missão que tem ocorrido em várias bibliotecas municipais. O bom investimento em equipamentos promotores da literacia digital não deve comprometer o resto.
Por fim, estes espaços podem e devem dar um maior contributo para a coesão territorial, o que só se consegue com a sua mais eficiente distribuição territorial. Em primeiro lugar, o projecto de uma rede de bibliotecas públicas cobrindo todo o território está por concluir e marca passo, volvidos 31 anos (209 bibliotecas activas, para 308 municípios, ou c. 2/3), com o Estado central alheado do seu programa de cofinanciamento de bibliotecas municipais. Por outro lado, em muitos concelhos uma só biblioteca fixa não chega a todas as populações, pelo que se impõe que o pivot central estimule (e seja parceiro) do lançamento de bibliotecas itinerantes junto dos municípios interessados, o que tem descurado. Para ambos os programas deve procurar-se financiamento junto da União Europeia e doutro tipo de organizações com empenho neste sector.