quarta-feira, abril 04, 2018

Porta mágica



"PORTA DE PAPEL 
Mariana estava fora de si:
- A imbecil! Isso mesmo: imbecil. É o que ela é. Pode dizer pra ela. Não faz a mínima diferença, que se ela vier pra cima de mim eu recebo de murro na cara. Murro. Na cara. Que a cara dela vai ficar inda mais torta. Pode fofocar, que eu nem estou aí. A burra! Burrona, burríssima, burralda! Mentirosa, é?
Fanfa, a Intrigante, não entendeu direito:
- Como é mesmo?
Mariana faliu pausadamente separando as sílabas:
- Mentirosa é a comadre da madrinha dela! Entendeste agora? Se não entendeste, fala, que eu parto tua cabeça em duas como quem divide uma melancia e cuspo dentro. Vai, vai correndo, vai e diz a ela, mas diz direito, diz como eu disse, repete palavra por palavra que tenho aqui duas testemunhas: o Tripa-de-Boi e a Duda. O Tripa-de-Boi não falta jamais à verdade. E a Duda é essa flor aí, pedra noventa, gente muito fina. É. Vai, Falsália, que eu sei muito bem que tu só estás espionando para contar do outro lado. Espiã! Espiã que não sabe nem bisbilhotar, que a gente vê logo a gatina escondida com o rabão de fora. Reage, mulher. Tu não falas nada, não dizes nada, tu não te defendes, tu és essa água morna aí.
- Mariana...
Mariana sabia arremedar, entortava a boca, ficava com ar de debilóide:
- "Mariana"... "Mariana"... É só o que tu dizes, é? Fala. Reage, mostra que tu tens sangue nas veias e não água mineral. Não dizes nada, nunca dizes nada, estás gravando tudo-tudo para contar de joelhos diante da patroazinha. Santarrona de pau oco, sonsa, pau de dois bicos é tudo isso e muito mais o que tués. Olha, Fanfa Fals´lia, vai ver se eu estou ali na esquina. Mas vai correndo, se não eu sou capaz de sumir e tu não me encontrares. Corre. Depressa, que se tu demoras muito eu não te espero. Se tu chegares e eu não estiver, me espera que não demoro. Vai. Vai. Tchauzinho, Fanfazinha Falsaliazinha.
Tripa-de-Boi por pouco não estoura uma gargalhada. Duda não gostava dessas presepadas da Mariana. Rir, não ria. Nem sorria. Mas Tripa-de-Boi sabia cortejar:
- Tu és de morte, Mariana. A pobre da Fanfa saiu que nem um foguete. Como é que pode, Mariana? Ela parece que tem medo de ti. Tu, eu acho que nasceste pra deputado, sei lá!, pra líder, pra general. Olha, minha querida, eu te quero para amiga. Quando tu belisca é beliscão que torce a carne, que a carne fica doendo.
Mariana inchava feito perua e rodava admirando a própria cauda e só faltava mesmo gorgolejar: gluglu, gluglu.
Duda interrompeu aquele namoro escandalosíssimo da Mariana, namorando-se como se estivesse diante de um espelho:
- Mariana: agora fala. Agora chega, né? Eu quero saber como é mesmo essa história da porta. Porta encantada, foi o que ti falaste?
Mariana ficava sempre excitada quando falava da sua porta.
- É. Pode ser Porta Encantada. Mas eu falei Porta Mágica. Porta Mágica é que é. Encantada é se antes de ser porta fosse um sapo e uma fada transformasse o sapo em porta. Aí era Porta Encantada, que poderia a fada transformar de novo em sapo. Nada de portas encantadas. A minha porta é mágica. É diferente, Duda. Tu olhas, parece que é de madeira, podes até pegar, podes cheirar, que é de madeira mesmo. Mas atravessas por ela como se fosse uma porta de papel."

Haroldo Maranhão
A Porta Mágica, Coimbra : Vértice, 1983
Prefácio de Óscar Lopes
Capa de Júlio Resende
Prémio Vértice

Até hoje, este bando me acompanha em todas as infâncias, e em todos os lugares de sermos humanos, mais Marianas, menos Fanfas, às vezes Tripas-de-Boi, às vezes Dudas... Sempre buscando a porta de papel e atravessando a porta mágica.
Livro disponível nesta edição portuguesa, em alfarrabistas e bibliotecas, e em edições brasileiras, em bibliotecas, nos mercados do sebo e do novo

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