@Gui Castro Felga |
A liberdade não se recebe, conquista-se. E defende-se. Byte a byte.
Os passos a que ando, um atrás do outro, como as letras em carreirinha, do fim para o princípio.
José Régio por Hermínio Felizardo |
Soneto quase inédito
Surge Janeiro frio e pardacento,
Descem da serra os lobos ao povoado;
Assentam-se os fantoches em São Bento
E o Decreto da fome é publicado.
Edita-se a novela do Orçamento;
Cresce a miséria ao povo amordaçado;
Mas os biltres do novo parlamento
Usufruem seis contos de ordenado.
E enquanto à fome o povo se estiola,
Certo santo pupilo de Loyola,
Mistura de judeu e de vilão,
Também faz o pequeno "sacrifício"
De trinta contos - só! - por seu ofício
Receber, a bem dele... e da nação.
JOSÉ RÉGIO Soneto escrito em 1969.
TERRENO
Muitas vezes o pintor fica sozinho,
com o terreno à sua frente, acentuado,
e os demónios às bicadas na sua cabeça.
É a altura de arriscar, de subir
os degraus da escada óptica, de forçar
a realidade a caber nos seus desenhos.
É também, senhores, a parte mais perigosa
da escalada – seria mau momento
para a corda se partir. Como quem salta
de uma dor física para um amor perdido,
ter as mãos e os braços em farrapos
e poder subir ainda um pouco mais.
Vítor Nogueira
[in Modo Fácil de Copiar uma Cidade, & Etc, 2011]
"A forma de dar aula vai mudar por conta das mudanças às quais os livros foram submetidos com o advento da plataforma eletrônica?"
Não sei. O que eu sei é que as escolas devem ensinar todas as formas da cultura escrita (manuscrita, impressa, eletrônica), conscientizar os alunos de suas diferenças, e os acostumar a usar uma ou outra forma de escrever, para navegar no mundo dos textos como se faz em uma floresta. Sei também que os objetos eletrônicos inventados todos os dias representam um avanço técnico, mas também são mercadorias, que têm um custo abusivo para muitos e que geram lucros (nem sempre justificáveis por sua utilidade). É também uma lição que as escolas devem ensinar em uma crítica sobre a sociedade de consumo. Mas, é claro, um dos deveres das políticas públicas é tornar essas novas oportunidades acessíveis e familiares. Uma última coisa: nas palavras de Emilia Ferreiro, a presença de computadores ou de tablets em sala de aula não resolve por si só os problemas de aprendizagem e transmissão de conhecimentos - e, ao mesmo tempo, pode trazer a "tentação" de reduzir ou excluir o papel essencial dos professores.
Fonte: Blog Bread and Roses |
A reportagem da jornalista Chloe Hadjimatheou arranca com o episódio da funcionária de um jardim infantil que encontrou um bilhete com uma das suas alunas de quatro anos: “Não virei buscar a Anna (nome fictício) hoje porque não tenho possibilidades de cuidar dela. Por favor tomem bem conta dela. Desculpem. A sua mãe” Ler mais aqui |
Eis o diálogo...
Riley: Não é justo todas as meninas comprarem princesas.
E todos os meninos comprarem super heróis!
Adulto: Por quê?
Riley: Porque meninas querem super-heróis e os meninos querem super-heróis!
E as meninas querem coisas rosa e os meninos não querem coisas rosa.
Adulto: Os meninos não...
Por que acha que isso acontece?
Fariam isso?
Riley: Porque as companhias que fazem esses (brinquedos) tentam enganar as meninas para que elas comprem as coisas rosa ao invés das coisas que os meninos querem comprar, certo?
Adulto: Sim... mas você pode comprar qualquer um, né? E os meninos também, se eles quiserem, eles podem comprar coisas cor de rosa, certo?
Riley: Sim!!! E porque então todas as meninas só tem que comprar princesas ???
Algumas meninas gostam de super-heróis, outras meninas gostam de princesas. Alguns meninos gostam de super-heróis, outros meninos gostam de princesas.
Então porque todas as meninas tem que comprar coisas cor de rosa e todos os meninos devem comprar coisas de cores diferentes?
Adulto: É uma boa pergunta, Riley
Na manhã do dia 1 de Janeiro de 1962, e, o meu irmão e as minhas duas irmãs formos cordados, não pelo meu pai ou a minha mãe, como era costume, mas por um tio ou uma tia. Mandaram-nos vestir um roupão sobre os pijamas e acompanhá-los. Atravessámos a curta distância que separava a casa do meu avô materno da casa onde vivíamos, e à qual nunca mais voltei. Durante semanas só nos disseram coisas vagas. As empregadas do meu calavam-se de repente quando passávamos. Soubemos depois que a família não yinha a certeza que o meu paí sobrevivesse aos ferimentos de bala que sofrera no ataque ao quartel de Beja na madrugada daquele dia 1. A minha mãe estava presa. Voltou para casa um ano e meio depois. Ele, ao fim de seis anos. Lembro-me: a minha mãe, a quem não deixaram abraçar os filhos pequenos, encharcando com lágrimas os punhos cerrados de fúria com que agarrava as grades do parlatório de Caxias. O nosso terror. O meu pai, numa cela da Penitenciária de Lisboa, entubado, magríssimo, a voz quase apagada, um fantasma desvanecido contra a luz da janela, aquele homem que eu recordava grande, alegre, garboso na sua farda. Desapareceu de vez a infatigável alegria do meu irmão, um miúdo palrador e de olhos cheios de luz. Ganhou dificuldades de fala e endureceu. Nunca mais encontrou a paz. Por mim, fui adolescente a querer ser homem sem ter para isso pai. Não foi fácil e não se tornou menos difícil depois. As minhas irmãs, eu sei lá, nunca falamos disso. A família juntou-se para nos acolher e ajudar, houve amigos que estiveram à altura da ocasião, mas vivíamos com alguma dificuldade. Quando a minha mãe foi libertada, tinha perdido a profissão que a PIDE a impediu de retomar. Arranjou os empregos possíveis. Dormia pouquíssimo, trabalhava loucamente e aguentou tudo. Só perdeu a juventude e a saúde.Quando visitávamaos os meus pais em Caxias, em Peniche, encontrámos pessoas que sofreram muito mais que nós e estavam muito mais desamparados. Especialmente os familiares de militantes do PCP, gente heróica sem bravata. Aprendemos que, para aém dos nossos pais e dos que, com eles, foram a Beja (alguns, com menos sorte e resistência física que o meu pai, para lá morrerem), havia em Portugal muitas pessoas rectas que, ao fazerem o que era necessário fazer, causaram danos colaterais como aqueles que a minha família sofreu. Aprendemos que é mesmo assim, que nada e consegue sem danos colaterais. Aprendemos também, todavia, que a maioria da pessoas não suporta esta ideia e só quer paz e sossego. É a vida, mas felizmente haverá sempre aqueles que são maiores que a vida. Se os não houvera, a iniquidade venceria necessariamente.Coincide com os 50 anos da Revolta de Beja a perseguição movida pelo regime que hoje vigora em Portugal contra Otelo Saraiva de Carvalho, o operacional responsável pela revolta seguinte, o 25 de Abril de 1974. Que isso não nos impeça de dizer e fazer o que é necessário. A iniquidade não pode vencer.Paulo Varela Gomes, in P2, p.3, suplemento do jormal Público, 07.01.2012
Fotografia de uma criança em Chicago |
Por vezes algumas pessoas simpáticas aproximam-se revelando a sua condição de leitores. Quase sempre me dizem, de várias formas delicadas, que não gostam do que escrevo. A mais comum é insinuarem que ficam afogadas em citações e que gostariam de me ouvir sobre algo que fosse verdadeiramente meu. Ora aquilo a que chamam citações são referências. As minhas são literárias. Mesmo as que não são literárias, só são susceptíveis de ser transmitidas através da escrita. Eu não falo com eles, não componho música, não pinto nem faço fotografias que possam transmitir o terreno comum que tento criar nos textos que escrevo.O que durante anos me levou a escrever foi desencadeado por livros. Não há, para mim, uma vida decente separada da literatura. A semana passada ouvi uma escritora chamada Dulce Maria Cardoso. Cresceu em África, de onde foi expulsa aos 11 anos, tendo-se exilado em Portugal. Apesar de ter passado por grandes provações é hoje uma mulher serena e obviamente muito interessante. Na entrevista, sempre que lhe era permitido, dizia coisas importantes, sobretudo pela forma bem estruturada como o fazia. Viveu numa capital colonial, numa época em que os brancos começaram a desaparecer sem que ninguém parecesse dar conta. Depois numa aldeia miserável da metrópole, finalmente em Cascais, onde, durante um ano, uma professora a tratou sempre como a retornada. O que lhe permitiu sobreviver sem sequelas foi a construção de uma personagem literária, ela própria, a quem iam acontecendo aquelas coisas desagradáveis. A pior existência torna-se tolerável se nos virmos como uma persona, que um dia será tão estimada como David Copperfield ou Jane Eyre. Mas esta operação, o método de Dulce, envolve uma dificuldade. É preciso ter lido algum autor, como Dickens ou as irmãs Brontë. É preciso ter lido. Na biblioteca itinerante da Gulbenkian ou na biblioteca municipal de uma aldeia obscura de Trás- -os-Montes. Livros grandes, como preferia a Dulce, que durassem uma semana ou toda a quinzena da requisição, até ao regresso da esplendorosa viatura com portas de estribos, faróis como olhos perscrutantes, abrindo-se pela retaguarda como uma baleia invertida e revelando estantes laterais por dentro da chapa ondulada.Hoje convoco três referências para uma crónica que é como um quarto de cuidados paliativos. Tony Judt, que no “Chalet da Memória” escreveu: “Passei muito tempo sentado na margem do rio de Putney, a pensar, embora não me lembre em quê”; os Radiohead de How to disappear completely: “That there, that’s not me /I go where I please/ I walk through walls/ I float down the Liffey”; e um dos últimos livros do Planeta Tangerina, que pergunta Para onde vamos quando desaparecemos, uma história de Isabel Minhós Martins ilustrada pela Madalena Matoso.Deixo os rios. Mais depressa me via no rio que William Blake, em “Dead Man”, desceu com Ninguém. Começo e acabo neste livro. As cores fundamentais da capa são duas: uma é ciano escuro, da faixa verde – azul do espectro, e a outra é sua complementar, quase o vermelho puro de Rodchenko. Nas mãos de Madalena Matoso podem ser o oceano, um rio, um campo cultivado, as camisolas dos pescadores, o tronco de uma árvore ou o perfil aguçado das cumeadas. Há depois uma linha preta, que no início parece uma estrada a atravessar as páginas, depois os cascos de barcos num mar revolto, a seguir os ramos das árvores no Inverno, uma rede viária e finalmente ambas as coisas e todas as coisas. As perguntas são as mais difíceis, mas feitas sem ênfase dramática nem a enjoativa infantilidade dos psicólogos dos afectos, frisando que há sempre mais possibilidades. Aí adensa-se o novelo das linhas, confundem-se os percursos e as copas das árvores e um rio-estrada mergulha num lago – bosque, enquanto uma casa se levanta como uma torre frestada.Quase no centro do livro, um casal que não saiu para dançar dorme, mas no sono compõe um pezinho de dança. É então que o texto ironiza: “ Melhor que nada.”O que faremos quando desaparecemos é igualmente a indagação central da obra de Vila-Matas, ela também construída pela sobreposição de referências, numa rede tão cerrada que, se as anotarmos, contaremos centenas, de Montaigne a Joseph Roth. Eu sou como a Dulce, embora a minha vida não tenha sido tão atribulada nem tão marcada a minha exclusão. Nos momentos mais graves – duas prisões, o incêndio na casa de Azeitão, a perseguição do paranóico que namorara com a rapariga dos fanzines – era sempre a outro que as coisas sucediam. E esse outro era uma personagem, quase sempre literária. No início um poema épico, depois um roman fleuve, em seguida uma novela picaresca e mais tarde contos curtos, de um grande apaziguamento, com momentos détode diversão.Em “Youth: Scenes of Provincial Life II”, Coetzee, ou o juvenil narrador coetzeeano, escreveu que gostaria de ter ido para a cama com Emma Bovary e de ter ouvido o famoso cinto a assobiar, como uma cobra, quando ela o despia.Queria, quando tiver alta desta enfermaria, ouvir o silvo do cinto de Emma Bovary, dançar enquanto durmo, de preferência com uma senhora de cabeleira de fogo, ou, vogando na canoa arranjada por Ninguém, ver o Tony Judt sentado na margem do rio a pensar em nada.
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