NÃO, NÃO, NÃO SUBSCREVO...
Não, não, não subscrevo, não
assino
que a pouco e pouco tudo volte ao de antes,
como se
golpes, contra-golpes, intentonas
(ou inventonas - armadilhas
postas
da esquerda prá direita ou desta para aquela)
não
fossem mais que preparar caminho
a parlamentos e governos que
irão
secretamente pôr ramos de cravos
e não de rosas fatimosas mas de
cravos
na tumba do profeta em Santa Comba,
enquanto pra
salvar-se a inconomia
os empresários (ai que lindo termo,
com
tudo o que de teatro nele soa)
irão voltar testas de ferro
do
capitalismo que se usou de Portugal
para mão-de-obra barata
dentro ou fora.
Tiveram todos culpa no chegar-se a
isto:
infantilmente doentes de esquerdismo
e como sempre lendo
nas cartilhas
que escritas fedem doutras realidades,
incompetentes
competiram em
forçar revoluções, tomar poderes e tudo
numa
ânsia de cadeiras, microfones,
a terra do vizinho, a casa dos
ausentes,
e em moer do povo a paciência e os olhos
num
exibir-se de redondas mesas
em televisas barbas de faláeia
imensa.
E todos eram povo e em nome del' falavam,
ou escreviam
intragáveis prosas
em que o calão barato e as ideias caras
se
misturavam sem clareza alguma
(no fim das contas estilo Estado
Novo
apenas traduzido num calão de insulto
ao gosto e à
inteligência dos ouvintes-povo).
Prendeu-se gente a todos os
pretextos,
conforme o vento, a raiva ou a denúncia,
ou
simplesmente (ó manes de outro tempo)
o abocanhar patriótico dos
tachos.
Paralisou-se a vida do pais no engano
de que os
trabalhadores não devem trabalhar
senão em agitar-se em demandar
salários
a que tinham direito mas sem que
houvesse produção
com que pagá-los.
Até que um dia, à beira de uma guerra
civil
(palavra cómica pois que
do lume os militares seriam quem
tirava
para os civis a castanhinha assada),
tudo sumiu num
aborto caricato
em que quase sem sangue ou risco de
infecção
parteiras clandestinas apararam
no balde da cozinha
um feto inexistente:
traindo-se uns aos outros ninguém tinha
(ó
machos da porrada e do cacete)
realmente posto o membro na
barriga
da pátria em perna aberta e lá deixado
semente que
pegasse (o tempo todo
haviam-se exibido eufóricos de nus,
às
Áfricas e às Europas de Oeste e Leste).
A isto se chegou. Foi
criminoso?
Nem sequer isso, ou mais do que isso um guião
do
filme que as direitas desejavam,
em que como num jogo de xadrez a
esquerda
iria dando passo a passo as peças todas.
É tarde e
não adianta que se diga ainda
(como antes já se disse) que o
povo resistiu
a ser iluminado, esclarecido, e feito
a enfiar
contente a roupa já talhada.
Se muita gente reagiu violenta
(com
as direitas assoprando as brasas)
é porque as lutas intestinas
(termo
extremamente adequado ao caso)
dos esquerdismos
competindo o permitiram.
Também não vale a pena que se lave
a
roupa suja em público: já houve
suficiente lavar que
todavia
(curioso ponto) nunca mostrou inteira
quanta camisa à
Salazar ou cueca de Caetano
usada foi por tanto
entusiasta,
devotamente adepto de continuar ao sol
(há
conversões honestas, sim, ai quantos santos
não foram antes
grandes pecadores).
E que fazer agora? Choro e lágrimas?
Meter
avestruzmente a cabeça na areia?
Pactuar na supremíssima
conversa
de conciliar a casa lusitana,
com todos aos beijinhos
e aos abraços?
Ir ao jantar de gala em que o Caetano,
o
Spínola, o Vasco, o OteIo e os outros,
hão-de tocar seus copos
de champanhe?
Ir já fazendo a mala para exílios?
Ou preparar
uma bagagem mínima
para voltar a ser-se clandestino usando
a
técnica do mártir (tão trágica porque
permite a demissão de
agir-se à luz do mundo,
e de intervir directamente em tudo)?
Mas
como é clandestina tanta gente
que toda a gente sabe quem já
seja?
Só há uma saída: a confissão
(honesta ou calculada)
de que erraram todos,
e o esforço de mostrar ao povo (que
mais
assustaram que educaram sempre)
quão tudo perde se vos perde a
vós.
Revolução havia que fazer-se.
Conquistas há que não pode
deixar-se
que se dissolvam no ar tecnocrata
do oportunismo à
espreita de eleições.
Pode bem ser que a esquerda ainda as
ganhe,
ou pode ser que as perca. Em qualquer caso,
que ao povo
seja dito de uma vez
como nas suas mãos o seu destino está
e
não no das sereias bem cantantes
(desde a mais alta antiguidade é
conhecido
que essas senhoras são reaccionárias,
com profissão
de atrair ao naufrágio
o navegante intrépido). Que a
esquerda
nem grite, que está rouca, nem invente
as serenatas
para que não tem jeito.
Mas firme avance, e reate os laços
rotos
entre ela mesma e o povo (que não é
aqueles milhares de
fiéis que se transportam
de camioneta de um lugar pró
outro).
Democracia é isso: uma arte do diálogo
mesmo entre
surdos. Socialismo à força
em que a democracia se realiza.
Há
muito socialismo: a gente sabe,
e quem mais goste de uns que dos
outros.
É tarde já para tratar do caso: agora
importa uma só
coisa - defender
uma revolução que ainda não houve,
como as
conquistas que chegou a haver
(mas ajustando-as francamente à
lei
de uma equidade justa, rechaçando
o quanto de loucuras se
incitaram
em nome de um poder que ninguém tinha).
E vamos
ao que importa: refazer
um Portugal possível em que o
povo
realmente mande sem que o só manejem,
e sem que a
escravidão volte à socapa
entre a delícia de pagar uma
hipoteca
da casa nunca nossa e o prazer
de ter um frigorifico e
automóveis dois.
Ah, povo, povo, quanto te enganaram
sonhando
os sonhos que desaprenderas!
E quanto te assustaram uns e
outros,
com esses sonhos e com o medo deles!
E vós, políticos
de ouro de lei ou borra,
guardai no bolso imagens de outras
Franças,
ou de Germânias, Rússias, Cubas, outras Chinas,
ou
de Estados Unidos que não crêem
que latinada hispânica
mereça
mais que caudilhos com contas na Suíça.
Tomai nas
vossas mãos o Portugal que tendes
tão dividido entre si mesmo.
Adiante.
Com tacto e com fineza. E com esperança.
E com um
perdão que há que pedir ao povo.
E vós, ó militares, para o
quartel
(sem que, no entanto, vos deixeis purgar
ao ponto de
não serdes o que deveis ser:
garantes de uma ordem democrática
em
que a direita não consiga nunca
ditar uma ordem sem
democracia).
E tu, canção-mensagem, vai e diz
o que disseste
a quem quiser ouvir-te.
E se os puristas da poesia te acusarem
de
seres discursiva e não galante
em graças de invenção e de
linguagem,
manda-os àquela parte. Não é tempo
para tratar de
poéticas agora.
Jorge de Sena
(Santa Bárbara, Fev. 1976)
in Quarenta Anos de Servidão (1979)