Imagem partilhada por Albano Esteves Martins no Facebook (2017) |
BIBLIOTECA, LARGO LUGAR DE ENCONTROS
Maria
José Vitorino
Laredo
Associação Cultural
Antigamente,
o Largo era o centro do mundo. Hoje, é apenas um cruzamento de
estradas, com casas em volta e uma rua que sobe para a Vila. O vento
dá nas faias e a ramaria farfalha num suave gemido, o pó redemoinha
e cai sobre o chão deserto. Ninguém. A vida mudou-se para o outro
lado da Vila.
O
comboio matou o Largo.
Manuel
da Fonseca, in “O Fogo e as Cinzas”, 1951
Agradeço
o convite para este debate, saudando este dia em que se reunem
profissionais de Pombal e da Região Centro de Portugal, parando para
pensar nas nossas práticas e apontar novos caminhos para as
bibliotecas, o que me deixa muito feliz.
Peço-vos
que nos imaginemos no Ano da Graça de, por exemplo, 2037.
Ultimamente tenho tido alguns problemas nos olhos, e talvez assim as
perspectivas de futuro sejam mais acessíveis...
No
já longínquo ano de 2017, Trump, à época Presidente de um grande
país que existia a Sul do Canadá, rompeu com os acordos de Paris,
assumindo a sua descrença dos objetivos de desenvolvimento
sustentável que a ONU aprovara em 2015 para uma modesta agenda de 15
anos, até 2030.
Houve
um momento de susto, até porque nesses anos aconteciam guerras mais
intensas junto ao Mediterrâneo, e o poder do EUA, grande fornecedor
de armas, era reconhecido. Todos sabemos que nos anos seguintes os
acontecimentos surpreenderam muitos, e fizeram cair no esquecimento
vozes que até aí se afirmavam como detentoras da única verdade
sobre a História e o futuro. Escassos vinte anos depois, ninguém se
lembra deles, e apenas os estudiosos dos arquivos de vez em quando
tropeçam, sem se deter, num dos seus discursos inflamados e repletos
de figuras numéricas – usava-se muito, ao tempo, compor palavras
com gráficos mais ou menos opacos. Há quem diga que a crença na
ilegibilidade da informação resultava de sobrevivências de
práticas tribais, esconjurando os inimigos dos poderosos com rituais
mais ou menos inúteis, porém de grande efeito dramático.
Coisa
que hoje nos parece incrível: nos jornais da região da Europa da
época, Trump ocupava muito espaço, mas o ITER
nem por isso.
O
ITER – sigla inspirada no palavra latina “iter” (caminho) e
acrónimo de International Thermonuclear Experimental Reactor é um
megaprojecto que visa a construção da instalação que permitirá -
esperam os cientistas - demonstrar a viabilidade da produção de
energia a partir da fusão nuclear. O projecto é, por agora (2017),
fruto da colaboração da UE, EUA, Rússia, China, índia, Coreia e
Japão, envolvendo muitas centenas de entidades de todos estes
parceiros. Para além da mega-estrutura com milhares de sofisticados
componentes, é surpreendente a complexidade de o levar por diante,
sabendo-se que cada país interveniente é responsável por diversas
partes. E depois tentar entender o entusiasmo dos que estão
envolvidos, sabendo-se que a construção não estará concluída
antes de 2025 e as primeiras experiências terão lugar lá para
2035. Fica em Cadarache, a 40km de Aix-en-Provence, França.
Para
saber, em 2017, o que era o ITER, tinha de se ser frequentador de
fontes alternativas, as “redes sociais” e os canais menos
sustentados pelos financiamentos mais gordos. Frequentador e
competente na leitura das mesmas fontes, para poder antecipar a
História, ou uma parte dela.
O
nosso futuro coletivo, mais ou menos previsível, depende destes
canais e de quem, onde, quando e como neles navega e deles aproveita
para agir.
As
bibliotecas são um dispositivo consolidado em democracias que prezam
a universalidade do acesso à informação e ao conhecimento, do mais
simples ao mais complexo, fazendo parte dos mínimos obrigatórios na
qualidade de vida dos cidadãos e no potencial de desenvolvimento da
sociedade. Garantir o seu pleno funcionamento e o seu valor é,
porém, mais que assegurar instalações e respostas tecnológicas,
mais até que dotá-las de meios humanos, físicos, financeiros, por
essenciais que estes sejam. Preciso é conseguir povoá-las, fazer
com que se integrem na normalidade do quotidiano das pessoas, de
todas as idades e perfis de interesse, como qualquer outro recurso de
higiene diária.
Preciso
é não apenas criá-las e não deixar que as matem, como conseguir
que façam parte do essencial da vida – tornando uma utopia numa
necessidade básica, por evolução do paradigma cultural dominante
na população.
Cada
biblioteca é diferente das outras, e todos os tipos de biblioteca
são relevantes, mas neste trabalho de fomentar as condições de
povoamento nenhumas se destacam tanto como as bibliotecas públicas e
as escolares. Entenda-se aqui bibliotecas públicas como as que se
assumem como parte da Cidade, no sentido lato – onde vivem as
pessoas. Entendam-se por bibliotecas escolares as que se associam a
instituições educativas formais – do jardim de infância ao
ensino superior.
Convirá,
no entanto, promover a coerência dos princípios para que a
diversidade floresça pela colaboração, e o resultado seja um
futuro melhor para toda a gente e em toda a parte. Esta tarefa,
sempre urgente, nunca foi fácil. Pela sua complexidade, exige
preparação permanente e atualizada dos seus agentes. Pela sua
urgência, só se cumprirá sem pressas, com planeamento e
determinação, agindo em simultâneo no longo, médio e curto prazo,
nos territórios locais, regionais, nacionais e globais.
O
que há de comum em todas essas dimensões? A tecnologia,
responderão. É verdade, mas a tecnologia é frágil, sujeita a
ameaças, e à sua própria natureza, que é de permanente alteração.
O essencial, como sempre, é a gente, a sua existência e, sobretudo,
a sua exigência, alimentada pela cultura, a arte, a ciência e a
educação em todas as vertentes, do formal ao não formal.
Num
mundo governado por algoritmos, nunca como hoje o domínio da palavra
e do pensamento lógico foi tão determinante, e tão expressivo das
desigualdades e iniquidades sociais. As palavras são preciosas, a
escrita e a leitura redescobertas diariamente como instrumentos
decisivos. A literatura vem-se reafirmando como uma das artes, e
todas as artes e as ciências afinam ideias e palavras reconhecendo a
mais valia do contributo literário. Como fruidores? Como criadores?
A resposta é ambos. E o que há 100 anos pareceria desconcertante –
dizia a Cecília Meireles “Ou
isto ou aquilo”
- surge hoje como evidente – teremos de ser e querer isto E aquilo.
Desafios
e mudanças nas Bibliotecas passam por as fazer para todos, para
tudo, para fruir e criar, aprender e ensinar, memória e informação,
inquietação e abrigo. Sobretudo, lugar de gente em criação de si
mesma como sujeito de futuro. Lugar corrente e quotidiano, acessível
e facilitador de acessos, de encontro, e de encontros. Lugar de
liberdade, pensamento e acção.
Que
seja a biblioteca a casa onde cabe e se sabe toda a gente, um centro
deste mundo que tantas vezes nos parece sem núcleo fixo. Algo de
comum e primordial, como o Largo de que escreveu Manuel da Fonseca, e
não um mero cruzamento de estradas.
Qual
o lugar das bibliotecas? O lugar para onde se mudou a vida, e que nos
ajuda a mudar de vida.
Texto apresentado em DESAFIOSE MUDANÇAS NAS BIBLIOTECAS : PERSPECTIVAS DE FUTURO. Pombal, 10 de
Julho de 2017. Painel com Pedro Príncipe e Maria José Vitorino
Sem comentários:
Enviar um comentário