terça-feira, julho 11, 2017

Mudar

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Imagem partilhada por Albano Esteves Martins no Facebook (2017)

BIBLIOTECA, LARGO LUGAR DE ENCONTROS



Maria José Vitorino
Laredo Associação Cultural


Antigamente, o Largo era o centro do mundo. Hoje, é apenas um cruzamento de estradas, com casas em volta e uma rua que sobe para a Vila. O vento dá nas faias e a ramaria farfalha num suave gemido, o pó redemoinha e cai sobre o chão deserto. Ninguém. A vida mudou-se para o outro lado da Vila.
O comboio matou o Largo.
Manuel da Fonseca, in “O Fogo e as Cinzas”, 1951


Agradeço o convite para este debate, saudando este dia em que se reunem profissionais de Pombal e da Região Centro de Portugal, parando para pensar nas nossas práticas e apontar novos caminhos para as bibliotecas, o que me deixa muito feliz.

Peço-vos que nos imaginemos no Ano da Graça de, por exemplo, 2037. Ultimamente tenho tido alguns problemas nos olhos, e talvez assim as perspectivas de futuro sejam mais acessíveis...

No já longínquo ano de 2017, Trump, à época Presidente de um grande país que existia a Sul do Canadá, rompeu com os acordos de Paris, assumindo a sua descrença dos objetivos de desenvolvimento sustentável que a ONU aprovara em 2015 para uma modesta agenda de 15 anos, até 2030.

Houve um momento de susto, até porque nesses anos aconteciam guerras mais intensas junto ao Mediterrâneo, e o poder do EUA, grande fornecedor de armas, era reconhecido. Todos sabemos que nos anos seguintes os acontecimentos surpreenderam muitos, e fizeram cair no esquecimento vozes que até aí se afirmavam como detentoras da única verdade sobre a História e o futuro. Escassos vinte anos depois, ninguém se lembra deles, e apenas os estudiosos dos arquivos de vez em quando tropeçam, sem se deter, num dos seus discursos inflamados e repletos de figuras numéricas – usava-se muito, ao tempo, compor palavras com gráficos mais ou menos opacos. Há quem diga que a crença na ilegibilidade da informação resultava de sobrevivências de práticas tribais, esconjurando os inimigos dos poderosos com rituais mais ou menos inúteis, porém de grande efeito dramático.

Coisa que hoje nos parece incrível: nos jornais da região da Europa da época, Trump ocupava muito espaço, mas o ITER nem por isso.

O ITER – sigla inspirada no palavra latina “iter” (caminho) e acrónimo de International Thermonuclear Experimental Reactor é um megaprojecto que visa a construção da instalação que permitirá - esperam os cientistas - demonstrar a viabilidade da produção de energia a partir da fusão nuclear. O projecto é, por agora (2017), fruto da colaboração da UE, EUA, Rússia, China, índia, Coreia e Japão, envolvendo muitas centenas de entidades de todos estes parceiros. Para além da mega-estrutura com milhares de sofisticados componentes, é surpreendente a complexidade de o levar por diante, sabendo-se que cada país interveniente é responsável por diversas partes. E depois tentar entender o entusiasmo dos que estão envolvidos, sabendo-se que a construção não estará concluída antes de 2025 e as primeiras experiências terão lugar lá para 2035. Fica em Cadarache, a 40km de Aix-en-Provence, França.

Para saber, em 2017, o que era o ITER, tinha de se ser frequentador de fontes alternativas, as “redes sociais” e os canais menos sustentados pelos financiamentos mais gordos. Frequentador e competente na leitura das mesmas fontes, para poder antecipar a História, ou uma parte dela.

O nosso futuro coletivo, mais ou menos previsível, depende destes canais e de quem, onde, quando e como neles navega e deles aproveita para agir.

As bibliotecas são um dispositivo consolidado em democracias que prezam a universalidade do acesso à informação e ao conhecimento, do mais simples ao mais complexo, fazendo parte dos mínimos obrigatórios na qualidade de vida dos cidadãos e no potencial de desenvolvimento da sociedade. Garantir o seu pleno funcionamento e o seu valor é, porém, mais que assegurar instalações e respostas tecnológicas, mais até que dotá-las de meios humanos, físicos, financeiros, por essenciais que estes sejam. Preciso é conseguir povoá-las, fazer com que se integrem na normalidade do quotidiano das pessoas, de todas as idades e perfis de interesse, como qualquer outro recurso de higiene diária.

Preciso é não apenas criá-las e não deixar que as matem, como conseguir que façam parte do essencial da vida – tornando uma utopia numa necessidade básica, por evolução do paradigma cultural dominante na população.

Cada biblioteca é diferente das outras, e todos os tipos de biblioteca são relevantes, mas neste trabalho de fomentar as condições de povoamento nenhumas se destacam tanto como as bibliotecas públicas e as escolares. Entenda-se aqui bibliotecas públicas como as que se assumem como parte da Cidade, no sentido lato – onde vivem as pessoas. Entendam-se por bibliotecas escolares as que se associam a instituições educativas formais – do jardim de infância ao ensino superior.

Convirá, no entanto, promover a coerência dos princípios para que a diversidade floresça pela colaboração, e o resultado seja um futuro melhor para toda a gente e em toda a parte. Esta tarefa, sempre urgente, nunca foi fácil. Pela sua complexidade, exige preparação permanente e atualizada dos seus agentes. Pela sua urgência, só se cumprirá sem pressas, com planeamento e determinação, agindo em simultâneo no longo, médio e curto prazo, nos territórios locais, regionais, nacionais e globais.

O que há de comum em todas essas dimensões? A tecnologia, responderão. É verdade, mas a tecnologia é frágil, sujeita a ameaças, e à sua própria natureza, que é de permanente alteração. O essencial, como sempre, é a gente, a sua existência e, sobretudo, a sua exigência, alimentada pela cultura, a arte, a ciência e a educação em todas as vertentes, do formal ao não formal.

Num mundo governado por algoritmos, nunca como hoje o domínio da palavra e do pensamento lógico foi tão determinante, e tão expressivo das desigualdades e iniquidades sociais. As palavras são preciosas, a escrita e a leitura redescobertas diariamente como instrumentos decisivos. A literatura vem-se reafirmando como uma das artes, e todas as artes e as ciências afinam ideias e palavras reconhecendo a mais valia do contributo literário. Como fruidores? Como criadores? A resposta é ambos. E o que há 100 anos pareceria desconcertante – dizia a Cecília Meireles “Ou isto ou aquilo” - surge hoje como evidente – teremos de ser e querer isto E aquilo.

Desafios e mudanças nas Bibliotecas passam por as fazer para todos, para tudo, para fruir e criar, aprender e ensinar, memória e informação, inquietação e abrigo. Sobretudo, lugar de gente em criação de si mesma como sujeito de futuro. Lugar corrente e quotidiano, acessível e facilitador de acessos, de encontro, e de encontros. Lugar de liberdade, pensamento e acção.

Que seja a biblioteca a casa onde cabe e se sabe toda a gente, um centro deste mundo que tantas vezes nos parece sem núcleo fixo. Algo de comum e primordial, como o Largo de que escreveu Manuel da Fonseca, e não um mero cruzamento de estradas.


Qual o lugar das bibliotecas? O lugar para onde se mudou a vida, e que nos ajuda a mudar de vida.


Texto apresentado em DESAFIOSE MUDANÇAS NAS BIBLIOTECAS : PERSPECTIVAS DE FUTURO. Pombal, 10 de Julho de 2017. Painel com Pedro Príncipe e Maria José Vitorino

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