TEMPOS
E LUGARES DE NÓS-OUTROS, IGUALDADE E CIDADANIA
Maria
José Vitorino
Laredo
Associação Cultural
19
de Maio de 2015
Agradeço
o convite que me foi endereçado para participar nesta Conferência
na bela Serra da Lousã, que generosamente nos acolhe num ambiente
tão propício à reflexão como favorável ao desenho que se sugere
para a Biblioteca, ou para cada biblioteca, e para o papel que podem
desempenhar no mundo. Lamento não poder permanecer no segundo dia da
Conferência, por motivos profissionais inadiáveis, pois estou certa
que vai ser muito estimulante.
Nesta
primeira manhã, cabe-me partilhar com a Manuela Barreto Nunes e a
Margarida Mota, queridas colegas bibliotecárias, a primeira mesa de
desafios, antes da comunicação de Roberto Soto Aranz. Convido-vos a
um pequeno aperitivo para a nossa conversa – numa mesa de 3
mulheres, como eram as Moiras, ou Parcas , mas neste caso ao
contrário da mitologia, fiando fios para tecer por bons destinos.
Assim seja!
No
aprazível Hotel onde nos encontramos, os quartos têm designações
inspiradoras, e a sua descodificação pode ser deveras estimulante.
Coube-me Hefesto, uma saborosa ironia e uma escolha muito adequada.
A
omnipresente Wikipedia, com todas as suas limitações, dá
informação:
Hefesto
ou Hefaísto (em grego: Ήφαιστος, transl.: Hēphaistos)
e “um deus da mitologia grega, cujo equivalente
na mitologia romana era Vulcano. Filho de Zeus e Hera,
rei e rainha dos deuses ou, de acordo com alguns relatos, apenas de
Hera, era o deus da tecnologia,
dos ferreiros, artesãos, escultores, metais, metalurgia, fogo e
dos vulcões. Como outros ferreiros mitológicos, porém ao
contrário dos outros deuses, Hefesto era manco, o que lhe dava uma
aparência grotesca aos olhos dos antigos gregos. Servia como
ferreiro dos deuses, e era cultuado nos centros manufatureiros e
industriais da Grécia, especialmente em Atenas. O centro de seu
culto se localizava em Lemnos.
Os
símbolos de Hefesto são um martelo de ferreiro,
uma bigorna e uma tenaz, embora por vezes tenha sido
retratado empunhando um machado.Hefesto foi responsável, entre
outras obras, pela égide, escudo usado por Zeus em
sua batalha contra os titãs. Construiu para si um magnífico e
brilhante palácio de bronze, equipado com muitos servos mecânicos.
De suas forjas saiu Pandora, primeira mulher mortal.
Talvez
por também eu ser coxa, e assumir um fascínio pelas tecnologias e
pela inovação em dispositivos vários associados à leitura e às
bibliotecas, me seja tão grata esta associação ao simbólico que
Hefesto nos transmite. Talvez seja coincidência o quarto que me
atribuíram, mas é certamente uma feliz coincidência. E como são
preciosas as felizes coincidências!
Sou
bibliotecária e professora, e realmente de certo modo uma artesã,
faço coisas – faço bibliotecas.... E como nas forjas antigas,
nenhum de nós trabalha sozinho: são sempre equipas, muitos braços
e olhos, e sempre com alguém mais novo a aprender dia a dia os
segredos do ofício.
Tal
como os ferreiros, amo as minhas ferramentas, e pouco importa que
elas hoje pareçam bem diferentes da bigorna e da tenaz. Tecnologia e
literacia são membros dum mesmo corpo construtor, e para nadarmos
nos mares do presente precisamos de os coordenar nos nossos movimentos.
Nada se faz sem riscos, e tal como o mitológico ferreiro sofreu os efeitos da exposição ao arsénio, com consequências no seu corpo, quem hoje se arrisca na forja das bibliotecas sujeita-se, frequentemente, a perdas e danos, que valem a pena se fizerem sentido numa visão e num compromisso que transcende a esfera individual. É preciso pois reunir tecnologia, literacia, cidadania e alguma ousadia. Serão estes elementos que teremos de associar na liga que sustente as bibliotecas de que precisamos para a nossa sobrevivência enquanto Humanidade, neste Planeta Terra, ou Gaia, se preferirem... Uma liga ao mesmo tempo resistente e ágil, leve, portátil, à medida da mão, do coração e da razão da Gente de hoje, em toda a parte.
Nada se faz sem riscos, e tal como o mitológico ferreiro sofreu os efeitos da exposição ao arsénio, com consequências no seu corpo, quem hoje se arrisca na forja das bibliotecas sujeita-se, frequentemente, a perdas e danos, que valem a pena se fizerem sentido numa visão e num compromisso que transcende a esfera individual. É preciso pois reunir tecnologia, literacia, cidadania e alguma ousadia. Serão estes elementos que teremos de associar na liga que sustente as bibliotecas de que precisamos para a nossa sobrevivência enquanto Humanidade, neste Planeta Terra, ou Gaia, se preferirem... Uma liga ao mesmo tempo resistente e ágil, leve, portátil, à medida da mão, do coração e da razão da Gente de hoje, em toda a parte.
O
desafio é servirmos, não deuses, mas homens e mulheres iguais,
fraternos e felizes.
A
perfeição das formas exteriores não é o que Hefesto dá, nem o
que procura – e as imperfeições, dificuldades e carências não lhe repugnam, antes o fazem voltar à forja, inventar, construir,
martelar, aperfeiçoar, fabricar, e dar a outros os frutos do seu
labor, para que sejam úteis ao caminho de cada um. Que melhor
metáfora, amigos bibliotecários, para a nossa labuta, seja na
biblioteca móvel que calcorreia caminhos com livros e jornais e
conversa atenta, seja nos conteúdos alimentados na web diariamente, seja
nas bibliotecas municipais ou nas universitárias?
Retomando
o título deste meu contributo, atrevo-me a um pequeno exercício de
invocação. Que Hefesto nos inspire na invenção de Bibliotecas
como dispositivos de espelhos. Neste tempo de selfies e Narcisos, por
um lado, e, por outro, de avassaladora comunicação virtual através de
distâncias físicas imensas (tal como nos sinais de espelhos usados
militarmente noutro tempo), o espelho é também uma analogia com
grande potencial.
Serão
as bibliotecas salas de espelhos, onde poderemos descobrir mais sobre
nós mesmos e sobre o Outro, espelhos mágicos a atravessar, como
Alice, pelo puro prazer da descoberta, ou para mover o mundo de
pernas para o ar e o transformar noutro melhor?
Nos
anos 70 do século passado, o Manuel António Pina bem anunciou esse
caminho, no livro O País das Pessoas de Pernas Para o Ar:
Um
dia fez as malas e foi conhecer mundo. Chegou a uma terra em que as
pessoas andavam todas de pernas para o ar e de cabeça para baixo. As
pessoas daquele país calçavam os sapatos nas mãos e as luvas nos
pés.
Zeus
venceu os Titãs graças ao escudo que Hefesto concebeu e construiu.
Construamos
Bibliotecas como as múltiplas obras de Hefesto, providenciemos
bibliotecas ao povo, e venceremos os modernos Titãs. Que Pandoras
sairão das nossas forjas?
As
boas histórias são assim, levam-nos os pensamentos longe, e nós
regressamos sempre mais ricos, mais fortes, mais sábios de novas
perguntas. Saibam as bibliotecas manter-se casas de boas histórias,
abertas, fraternas e livres, e não teremos feito pouco.
Por
hoje, bem dito e louvado, está o conto acabado.
Conferência
Ibérica
promovido
por Fundação ADFP
Miranda
do Corvo, Hotel Parque Serra da Lousã, 19-20 de Maio de 2017
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