sexta-feira, maio 19, 2017

Miranda do Corvo, 19.5.2017



TEMPOS E LUGARES DE NÓS-OUTROS, IGUALDADE E CIDADANIA
Maria José Vitorino
Laredo Associação Cultural
19 de Maio de 2015

Agradeço o convite que me foi endereçado para participar nesta Conferência na bela Serra da Lousã, que generosamente nos acolhe num ambiente tão propício à reflexão como favorável ao desenho que se sugere para a Biblioteca, ou para cada biblioteca, e para o papel que podem desempenhar no mundo. Lamento não poder permanecer no segundo dia da Conferência, por motivos profissionais inadiáveis, pois estou certa que vai ser muito estimulante.

Nesta primeira manhã, cabe-me partilhar com a Manuela Barreto Nunes e a Margarida Mota, queridas colegas bibliotecárias, a primeira mesa de desafios, antes da comunicação de Roberto Soto Aranz. Convido-vos a um pequeno aperitivo para a nossa conversa – numa mesa de 3 mulheres, como eram as Moiras, ou Parcas , mas neste caso ao contrário da mitologia, fiando fios para tecer por bons destinos. Assim seja!

No aprazível Hotel onde nos encontramos, os quartos têm designações inspiradoras, e a sua descodificação pode ser deveras estimulante. Coube-me Hefesto, uma saborosa ironia e uma escolha muito adequada.

A omnipresente Wikipedia, com todas as suas limitações, dá informação:
Hefesto ou Hefaísto (em grego: Ήφαιστος, transl.: Hēphaistos)  e “um deus da mitologia grega, cujo equivalente na mitologia romana era Vulcano. Filho de Zeus e Hera, rei e rainha dos deuses ou, de acordo com alguns relatos, apenas de Hera, era o deus da tecnologia, dos ferreiros, artesãos, escultores, metais, metalurgia, fogo e dos vulcões. Como outros ferreiros mitológicos, porém ao contrário dos outros deuses, Hefesto era manco, o que lhe dava uma aparência grotesca aos olhos dos antigos gregos. Servia como ferreiro dos deuses, e era cultuado nos centros manufatureiros e industriais da Grécia, especialmente em Atenas. O centro de seu culto se localizava em Lemnos.
Os símbolos de Hefesto são um martelo de ferreiro, uma bigorna e uma tenaz, embora por vezes tenha sido retratado empunhando um machado.Hefesto foi responsável, entre outras obras, pela égide, escudo  usado por Zeus em sua batalha contra os titãs. Construiu para si um magnífico e brilhante palácio de bronze, equipado com muitos servos mecânicos. De suas forjas saiu Pandora, primeira mulher mortal.

Talvez por também eu ser coxa, e assumir um fascínio pelas tecnologias e pela inovação em dispositivos vários associados à leitura e às bibliotecas, me seja tão grata esta associação ao simbólico que Hefesto nos transmite. Talvez seja coincidência o quarto que me atribuíram, mas é certamente uma feliz coincidência. E como são preciosas as felizes coincidências!

Sou bibliotecária e professora, e realmente de certo modo uma artesã, faço coisas – faço bibliotecas.... E como nas forjas antigas, nenhum de nós trabalha sozinho: são sempre equipas, muitos braços e olhos, e sempre com alguém mais novo a aprender dia a dia os segredos do ofício.

Tal como os ferreiros, amo as minhas ferramentas, e pouco importa que elas hoje pareçam bem diferentes da bigorna e da tenaz. Tecnologia e literacia são membros dum mesmo corpo construtor, e para nadarmos nos mares do presente precisamos de os coordenar nos nossos movimentos. 

Nada se faz sem riscos, e tal como o mitológico ferreiro sofreu os efeitos da exposição ao arsénio, com consequências no seu corpo, quem hoje se arrisca na forja das bibliotecas sujeita-se, frequentemente, a perdas e danos, que valem a pena se fizerem sentido numa visão e num compromisso que transcende a esfera individual. É preciso pois reunir tecnologia, literacia, cidadania e alguma ousadia. Serão estes elementos que teremos de associar na liga que sustente as bibliotecas de que precisamos para a nossa sobrevivência enquanto Humanidade, neste Planeta Terra, ou Gaia, se preferirem... Uma liga ao mesmo tempo resistente e ágil, leve, portátil, à medida da mão, do coração e da razão da Gente de hoje, em toda a parte.

O desafio é servirmos, não deuses, mas homens e mulheres iguais, fraternos e felizes.

A perfeição das formas exteriores não é o que Hefesto dá, nem o que procura – e as imperfeições, dificuldades e carências não lhe repugnam, antes o fazem voltar à forja, inventar, construir, martelar, aperfeiçoar, fabricar, e dar a outros os frutos do seu labor, para que sejam úteis ao caminho de cada um. Que melhor metáfora, amigos bibliotecários, para a nossa labuta, seja na biblioteca móvel que calcorreia caminhos com livros e jornais e conversa atenta, seja nos conteúdos alimentados na web diariamente, seja nas bibliotecas municipais ou nas universitárias?

Retomando o título deste meu contributo, atrevo-me a um pequeno exercício de invocação. Que Hefesto nos inspire na invenção de Bibliotecas como dispositivos de espelhos. Neste tempo de selfies e Narcisos, por um lado, e, por outro, de avassaladora comunicação virtual através de distâncias físicas imensas (tal como nos sinais de espelhos usados militarmente noutro tempo), o espelho é também uma analogia com grande potencial.
Serão as bibliotecas salas de espelhos, onde poderemos descobrir mais sobre nós mesmos e sobre o Outro, espelhos mágicos a atravessar, como Alice, pelo puro prazer da descoberta, ou para mover o mundo de pernas para o ar e o transformar noutro melhor?

Nos anos 70 do século passado, o Manuel António Pina bem anunciou esse caminho, no livro O País das Pessoas de Pernas Para o Ar:
Um dia fez as malas e foi conhecer mundo. Chegou a uma terra em que as pessoas andavam todas de pernas para o ar e de cabeça para baixo. As pessoas daquele país calçavam os sapatos nas mãos e as luvas nos pés.

Zeus venceu os Titãs graças ao escudo que Hefesto concebeu e construiu.
Construamos Bibliotecas como as múltiplas obras de Hefesto, providenciemos bibliotecas ao povo, e venceremos os modernos Titãs. Que Pandoras sairão das nossas forjas?

As boas histórias são assim, levam-nos os pensamentos longe, e nós regressamos sempre mais ricos, mais fortes, mais sábios de novas perguntas. Saibam as bibliotecas manter-se casas de boas histórias, abertas, fraternas e livres, e não teremos feito pouco.

Por hoje, bem dito e louvado, está o conto acabado.


Conferência Ibérica
promovido por Fundação ADFP
Miranda do Corvo, Hotel Parque Serra da Lousã, 19-20 de Maio de 2017

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