segunda-feira, dezembro 12, 2011

Pelo que muda o coração dos homens


"Mas o vale do Tua era o vale do Tua, um sítio belíssimo, onde o calor a pique do Verão, ou o despertar da Primavera ou as primeiras chuvas de Outono faziam a terra cheirar a terra, a urze, aos mil e um cheiros mediterrânicos que hoje só conhecemos dos livros, quando lemos os clássicos. (...) Estivessem vivos homens como Orlando Ribeiro, e eles dir-nos-iam os elos que estamos a quebrar, não com o passado, mas com o presente e connosco próprios.

Portugal é um país que tem destruído intensamente a sua paisagem natural nos últimos anos, tem uma grande densidade de barragens a norte e cada barragem é um vale de um rio que desaparece. As cumeadas dos montes já estão cheias de eólicas, e quase que não é possível em lado nenhum olhar à volta de um ponto alto, mesmo nos parques naturais, sem ver artefactos colocados bem diante dos nossos olhos nos últimos 20 anos. Já não sabemos, por exemplo, o que é uma noite escura, e por isso o espanto homérico com o céu e as estrelas é uma experiência que já "não nos assiste", para assentar os pés na terra em que verdadeiramente vivemos, a das trivialidades boçais.

Eu sei que uma parte desta destruição era inevitável e faz parte de um difícil trade-off  entre a economia, fonte de riqueza, os recursos a explorar, e o ambiente, mas, como estamos a chegar aos limites de tudo - últimos vales, últimos montes, ultimas paisagens -, esse trade-off esgotou-se nas suas virtualidades, e é hoje uma desvantagem cujos custos se pagarão num futuro próximo. As crianças que hoje nascem vão viver num mundo dominado pela poluição luminosa, de caos urbanístico, construções clandestinas mal-amanhadas e sem paisagem natural. Nunca vão ver a Via Láctea a não ser em fotografias, não sabem o que é um vale selvagem de um rio a não ser nos filmes americanos, nunca cheirarão a urze, nem saberão o que é uma giesta, não terão o vento na cara no cimo duma montanha, sem este trazer a marca conspurcada do mundo de lixo que começa logo uns metros mais abaixo, nunca verão um carvalho, nunca comerão uma truta sem ser de viveiro, não saberão o que é o silêncio "habitado" que muda o coração dos homens que o sabem ouvir." 
J. Pacheco Pereira

Lido e escrito em Dezembro de 2011, perante a perspectiva de mais uma barragem que aniquilará o Vale do Tua e de caminho compromete o Douro vinhateiro, há poucos anos consagrado como Património Mundial pela Unesco.

Blogado aqui a pensar nos nossos netos e nos filhos dos nossos netos por nascer, em memória dos Mestres como Orlando Ribeiro e do aparentemente perdido Bom Senso Elementar. E, já agora, de Portugal, meu e nosso País.

Ler o resto do texto citado:
ABRUPTO

Sem comentários:

Ladrões de Bicicletas: A tirania do mérito

Ladrões de Bicicletas: A tirania do mérito : « Quem alcançou o topo, passou a acreditar que o sucesso foi um feito seu, uma medida do seu ...