Os passos a que ando, um atrás do outro, como as letras em carreirinha, do fim para o princípio.
quarta-feira, junho 30, 2010
segunda-feira, junho 28, 2010
sexta-feira, junho 25, 2010
História! História!
Era uma vez uma fonte à beira da estrada. Os pardais das árvores vizinhas tinham ali o seu ponto de encontro.
Matavam a sede, tomavam banho, chilreavam uns com os outros.
De semana a semana, vinha um homem, sempre de automóvel, buscar água à fonte. Enchia uma quantidade de garrafões de plástico e, depois, abalava.
Nessas alturas, a pardalada fugia para o poiso das árvores e ficava a observar.
— O que é que ele vai fazer com tanta água? — intrigava-se um pardalito novo.
— Deve ir regar as couves — sugeria um pardal.
— Para regar as couves é pouca — replicava uma velha pardoca, muito conhecedora da vida.
— Então é para ele beber — propunha outro pardal.
— Para ele beber é muita — replicava a velha pardoca.
— Para o que será? — perguntava o pardalito, sem que ninguém soubesse responder-
-lhe.
Decidiu investigar. Voou atrás do automóvel, mas como ainda tinha as asas com pouca força e a estrada era às curvas e contra-curvas, perdeu-lhe o rasto. E perdeu-se.
Esvoaçou ao calhas, até descer sobre um telheiro, junto à estrada. No telheiro havia melões à venda e cebolas e batatas e garrafões de vinho. Alto lá! E também havia garrafões de água, tal e qual os que o homem do automóvel enchia, na fonte dos pardais.
Se o pardal soubesse ler, leria no rótulo dos garrafões:
“ÁGUA DA FONTE DA SAÚDE – Graças a ela, os novos crescem e os velhos não encolhem”.
Aos saltinhos, diante dos garrafões, o pardalito admirava a fotografia do rótulo. Lá estava a fonte, centro da sua vida, e uns passarinhos a beber água no rebordo do tanque. Vendo bem, aquele mais pequeno, à direita, podia ser ele, o pardalito aventureiro.
Muito orgulhoso da sua descoberta, o pardal voou muito alto, tão alto que, lá de cima, viu o telheiro dos garrafões, a estrada às curvas e a fonte da Saúde ou dos pardais, donde ele viera.
Disparou em direcção ao ponto de partida e muito excitado piou para os companheiros:
— Já sei o segredo dos garrafões. O homem anda a vender o nosso retrato mais o retrato da nossa fonte.
— E a água para que serve? — perguntou um companheiro.
— Para segurar o nosso retrato — respondeu, prontamente, o pardalito.
António Torrado
il. Cristina Malaquias
http://www.historiadodia.pt/pt/historias/11/26/historia.aspx
quinta-feira, junho 24, 2010
Burmese football
Em tempo de futeboladas várias, esta fotografia de antologia está bem ao pé do nosso interesse. Graças à tecnologia e ao maravilhoso mundo das bibliotecas digitais, neste caso a Europeana.
O original está guardado na British Library, UK. Assim, num clic, além da fotografia, alcançamos a sabedoria da história, do como foi, do para que era...
Ler sentidos e pôr em sentido a memória e o coração.
terça-feira, junho 22, 2010
segunda-feira, junho 21, 2010
vidasimples pensamentoselevados: MARTA 3
Ler por fora da profissão. Ler porque apetece, sem obrigação.
Pensar no que nos rodeia, sem a utilidade à vista. Deixar entrar o sol da inquietação.
Para coisas dessas se criaram os autores
sábado, junho 19, 2010
Quase 100 anos depois de chegarmos à República
quarta-feira, junho 16, 2010
terça-feira, junho 08, 2010
Biblioteca Escolar, Enxara do Bispo, Mafra, Portugal, 2010
domingo, junho 06, 2010
quinta-feira, junho 03, 2010
João Aguiar, até sempre
A NATIVIDADE RELUTANTE
À porta da Sala fui encontrar o Supervisor, rodeado pelos seus Técnicos. Aqueles rostos tensos, angustiados, confirmaram o meu pressentimento: havia crise.
Mal me viu, o Supervisor correu ao meu encontro.
– Ainda bem que veio, é a nossa última esperança!
– O que se passa? Algum contratempo?
Ele dominava-se, mas era evidente que estava à beira do pânico.
– Contratempo? Se fosse só um contratempo... mas é bem pior. Pode muito bem ser uma catástrofe!
Indicou a porta da Sala, que se mantinha fechada, e acrescentou:
– O Processo foi interrompido.
Como assim, perguntei. Isso nunca tinha acontecido, era uma coisa inconcebível. O Supervisor encolheu os ombros e explicou:
– Ele abandonou a Câmara de Transformação e recusa-se a voltar para lá.
Não percebi logo o significado da frase.
– Não quer voltar? Quer dizer que...
Gravemente, o Supervisor fez um aceno afirmativo: – Recusa-se a nascer.
– Como?
Ao longo dos corredores silenciosos, a minha voz vibrou como uma explosão, a ponto de me assustar e de fazer estremecer os Técnicos.
– Mas isso não é possível. A Hora está a chegar.
O Supervisor fez outro aceno de cabeça. – Por isso o chamei com tanta urgência. Talvez Ele lhe dê ouvidos.
Sentia-me atordoado. A ideia de tal recusa era inimaginável.
– Quando entrou – prosseguiu o Supervisor – ia mais sombrio do que é habitual. Mas iniciou o Processo normalmente. De súbito, ao atingir os sete anos, parou, saiu da Câmara e disse: «Nada feito!»
– Está, então, nos sete anos?
– Sim, parou aí. – Num fio de voz, o Supervisor suplicou: – Fale-Lhe. Tente convencê-Lo. Pense no que está em jogo.
Eu pensava, sim, e a ideia dava-me tonturas. Fiz um gesto com a mão; ele abriu a porta e entrei.
Quando O vi, tive outra surpresa: estava, de facto, com sete anos – um Menino negro de sete anos, magrinho e mirrado, acocorado a um canto da sala. Olhou-me com ar de irritação.
– Ah. Pedro. Contaram-te.
– Sim, contaram. Estão todos muito preocupados.
Com cautela, para não parecer que recorria à lisonja, acrescentei:
– Era uma boa ideia, essa. A cor da pele, quero dizer.
Esboçou um sorriso. – Sim, pensei que era tempo. A África está a sofrer demasiado.
– Exactamente.
O sorriso apagou-se. – Mas pensei melhor e... não, decidi que não. Estou farto de esforços inúteis, sem sentido. Não haverá Nascimento.
Engoli em seco.
– Senhor, isso significa que na Terra não haverá Natal.
Ele, que baixara os olhos para o chão, endireitou-se. Era, agora, um pequeno Semita, um Árabe ou um judeu.
– Não haverá? Mas tem havido Natal, Pedro? Natal digno desse nome? Nunca dei por isso. Terei Eu andado distraído durante todos estes séculos?
Abri os braços. – Compreendo o que quereis dizer. A Humanidade da Terra não parece observar o verdadeiro espírito...
– Observar? Fizeram dele uma farsa! Festas, banquetes, presentes... aqueles que podem, porque os outros morrem de fome ou de guerra. E tem piorado, se é que ainda é possível. Natal, Pedro, só nos romances e nas peças de teatro e naqueles filmes que fazem nesse lugar infernal chamado... han...
– Hollywood.
– Isso. E mesmo aí, passou de moda. Não, não Me convences a submeter-Me a mais uma Natividade. Aliás, deixou de fazer sentido.
Esta última frase desorientou-me: – Como? Deixou de...
E Ele, numa ironia cortante:
– O Nascimento milagroso através de uma Virgem. Eles já não gostam, já não lhes diz nada. As virgens perderam a cotação nos seus malditos mercados. Aliás, não acreditam. Quando muito, hão-de produzir as crianças em laboratório. Eles acreditam nos laboratórios, mas não nas virgens.
Neste momento, Quem estava diante de mim era uma Criança loura, resplandecente, de olhos azuis brilhantes e zangados. Estremeci sem querer e Ele perguntou-me se tinha frio.
– Não. Perdoai-me, são essas mudanças tão rápidas. Perturbam-me...
Fez uma careta infantil. A Transformação costuma produzir efeitos desses.
– Nem reparei, foi involuntário.
Retomou o curso das recriminações: – Tantas mais coisas que poderia dizer! Houve algum dia de Natal, um só, em que não houvesse mortes, e doenças, e crimes? Algum dia...! Eles nem sabem ao certo em que dia nasci. E a hora: uma convenção. Decidiram festejar-Me à meia-noite, mas quantas meias-noites há na Terra? Numa só noite, nasço tantas vezes quantos os fusos horários!
Abri a boca, porém Ele disparou:
– Dois mil anos, Pedro. Dois mil Natais traídos. Não haverá mais nenhum. já decidi.
Ficou calado enquanto ganhava os traços fisionómicos de um pequeno Chinês. Decidi-me a falar:
– Senhor: não foram eles concebidos com sexos, desejos, paixões e instintos? Não estão sujeitos à morte e à doença e à luxúria e à miséria e a uma muito breve e insatisfatória felicidade?
Baixei a voz para rematar: – E não estão eles à espera... há muito mais que dois mil anos... de um Sinal inegável e irrecusável?
Ele fixou-me com intensidade: – Queres dizer que a culpa... que foi tudo mal planeado e mal executado?
Curvei humildemente a cabeça.
– Não. Não me atrevo a dizer seja o que for, não quero renegar-Vos outra vez. Mas considerai, suplico-Vos: pode bem ser que ainda haja neste momento, lá em baixo, um deles que esteja à Vossa espera, sinceramente e verdadeiramente. Um só, perdido entre biliões.
Não sei quanto tempo ali ficámos a olhar-nos. De repente, Ele encaminhou-se para a Câmara de Transformação, abriu a escotilha e virou-se de novo para mim.
– Está bem, Pedro. Com esse argumento...
Sorri-Lhe, aliviado. Devolveu-me o sorriso e entrou na Câmara.
Mas por um instante, um milésimo de segundo, quando voltava a ser um Menino negro, vi que os Seus olhos eram agora os de um velho. Cansados, mortalmente cansados e tristes.
Quando saí da Sala, o Arcanjo Supervisor e os seus Anjos, que ainda estavam junto da porta, felicitaram-me com entusiasmo. Não lhes respondi.
Avancei pelo corredor deserto, levando comigo a memória daqueles olhos em que cabia toda a mágoa do Universo.
© João Aguiar, O Canto dos Fantasmas, 2ª ed. revista, Porto, Edições Asa, 1999, pp. 90-94 (reprodução autorizada pelo autor) Inhttp://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/aguiar3.htm
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