Os meninos, a quem são dirigidas estas palavras de muita sabedoria, não devem imitar o analfabetismo dos bois nem dos homens que andam atrás ou à frente deles. (...) Numa coisa, porém, devem imitar os bois: na ruminação. E isto quer dizer: ler, ler bem, ler com os olhos e o pensamento.
António José Forte. Os bois e os livros in Uma faca nos dentes (2003), p. 124
São os livros pasto de ruminação, no sentido que o poeta lhe dá, que é o da leitura reflexiva, crítica, educada e educadora; antes de mais, de cada leitor
Nos livros, lemos com os olhos tudo: as palavras, os sinais, as cores e os desenhos, o próprio formato do objecto. Nos outros lugares do lido, como os rectângulos luminosos por onde espreitamos palavras, sinais e outros alimentos do nosso ruminar, face a face como as telas pintadas ou o som directo dos instrumentos musicais, ou emitidos à distância por misteriosos meios como a Internet, aprisionados em discos brilhantes ou em outros mil disfarces ainda por descobrir, olhos e ouvidos, como nos audio-livros, ou na voz que simplesmente lê alto, desafiam o pensamento, e com ele alimentam a construção de cada qual como leitor, ou leitora.
Aprender a ler, a ser leitor, é caminho de muito ruminar. Carece, necessariamente, de muitos livros e de outros formatos ou suportes, quantidades acessíveis a sujeitos dispostos, para tal leitura animados, e apoiados. Vive ainda, do mais precioso dos bens, o tempo - para si, e para ler.
No coração dos meios que fomos inventando para formar leitores para ler o mundo, as bibliotecas são incontornáveis: tal como na alegoria dos ruminantes, pasto de ler com os olhos e o pensamento. Desejavelmente, meios preciosos para formar leitores, autores eles próprios do sentido do que lerem e imaginarem. Recursos que distinguem, em séculos cada vez mais exigentes, quem sabe, e pode, aprender e exercitar o ler o mundo, no sentido que lhe deu Paulo Freire.
Promover a leitura, a formação de leitores, a criação e boa gestão de bibliotecas, com destaque naturalmente para as escolares e as públicas, mas também de museus e outros recursos, é assumir a Cultura como factor essencial do Desenvolvimento nas sociedades actuais. Fazê-lo para toda a gente, com toda a gente, é desafio inevitável quando se defende o desenvolvimento das democracias, e o aumento de uma riqueza maior do Planeta, tantas vezes ameaçada: a capacidade dos seres humanos de entender, compreender, criar.
Fazer tudo isto, a sério, implica conhecimento, profissionais - gente preparada e aplicada - meios materiais, criatividade. Tem de ser feito com rapidez, porém sem pressa. Com firmeza, porém na maior das liberdades. A muitas mãos, colaborativamente, com brio porém sem protagonismos que dispersem energias. Falhando e emendando, repetindo e inventando. Ninguém disse que era fácil... Implica, além disso, humor e alegria. Alegria que ajuda ao fluir da acção e da comunicação - conquistando tempo para cada qual se construir leitor, fazemos o tempo crescer, sentir-se maior mesmo quando se mede em escassos minutos de relógio.
Formar leitores para ler o mundo significa assim agir para alargar a elasticidade do tempo psicológico, fenómeno que os sábios do cérebro explicarão. Se formos capazes de o cumprir, formar leitores para ler o mundo é, afinal, actuar para que no futuro os leitores, e o mundo, se transformem e se reescrevam. Sabendo-o, não o temem nem se diminuem pelo medo da transformação.
Formar leitores – e leitoras – para ler o mundo vem-se tornando cada vez mais urgente. Se calhar, foi-o sempre. Nós é que ainda não o tínhamos lido bem, imitando o maravilhoso ruminar dos bois no texto de Forte, e um bocadinho mais: lendo com vagar, com os olhos, o coração e o pensamento.
António José Forte (1931-1988). Nos anos 50, integrou o Grupo do Café Gelo,