Quijote pelo Ballet de Catalunha |
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Público • Sábado, 19 de Outubro de 2019
O país que “deu” o Quixote merece tudo,
menos muita da sua política. É também por admiração e estima por Espanha que escrevo isto
José Pacheco Pereira
A Espanha nem una nem grande nem livre
“La libertad, Sancho, es
uno de los más preciosos dones que a
los hombres dieron los cielos; con ella no
pueden igualarse los tesoros
que
encierran la tierra y el mar: por la libertad, así como por
la honra, se puede y debe aventurar la vida.”
(Cervantes, Don Quijote)
Este é um artigo indignado e como eu sou de raras indignações
podem parar de o ler aqui. Nestas alturas estou-me positivamente “marimbando” —
sem desculpa pelo plebeísmo porque preciso da sua força — para as nossas tricas
nacionais, e para o gigantesco espectáculo de hipocrisia que é a União
Europeia, capaz de se mobilizar pelas mais minoritárias causas da moda, mas
indiferente ao que se passa na Catalunha.
Como cá. São todos muito liberais, todos muito preocupados pelas
liberdades (económicas), todos muito tradicionais, alguns muito revoltados com
a repressão (na Venezuela ou em Cuba), e chega-se à Catalunha e ficam todos muito indignados com a “violência” na rua, todos muito
legalistas, todos indiferentes a um processo político persecutório, todos
olhando para o lado para não verem as multidões na rua, e acima de tudo para
não verem as faces dessa multidão. Para não verem que eles são iguais a nós, velhos, mulheres, donas de casa, trabalhadores, jovens
casais, moradores, professores, funcionários, gente LGBT, gente conservadora,
gente cujos pais e avós conheceram a guerra civil e guardam a memória dos
fuzilamentos de dirigentes catalães ou dos movimentos estudantis e operários
que confrontaram o franquismo numa Catalunha mais irridente do que muitas
partes de Espanha. Eles olham para a rua e vêem os capuzes, e como o El País e a imprensa portuguesa
que o segue estão muito preocupados com a Constituição e com a lei, com revoltas, golpes
de Estado, revoluções, sedições, separatismo, independentismo. O que não vêem
ou admitem é que possa haver uma vontade, uma determinação, uma razão pela independência da
maioria dos catalães.
O problema é que na rua catalã não estão fascistas de pata ao
alto, nem gente a marchar detrás de variantes da suástica, ou de runas
nórdicas, nem a gritar contra os refugiados, nem a atacar mesquitas e sinagogas
— está gente como nós. Mas o mesmo não se pode dizer das setas da Falange, nem
da bandeira espanhola transformada no estandarte da “España, una, grande y
libre” do franquismo, que
recrudesceram nos dias de hoje em resposta ao independentismo catalão, numa
causa que já mereceu em Espanha muitos milhares de mortos.
Na verdade, os nossos anticatalães, parte do PS e quase toda a
direita acabam por ser muito amigos de uma das mais sinistras tradições do país
ao nosso lado, o espanholismo de Castela, historicamente muito agressivo,
tradicional inimigo de Portugal, a pátria que supostamente lhes enche o peito
antes de chegarem a Bruxelas, onde desincha. O espanholismo que encontrou os
seus melhores porta-vozes em partidos de extrema-direita como o Vox, que Nuno
Melo branqueou, ou num PP minado pela corrupção, ou na sua versão modernizada,
o Ciudadanos, o partido que o CDS gostaria de ser quando for grande. E em
Espanha nesse partido que nem é socialista, nem operário, mas que agora é muito
espanhol e que aceitou ser chantageado pelos herdeiros de Francisco Franco e
que não teve a coragem de evitar o julgamento político dos independentistas.
Podem não ser favoráveis à independência catalã, não podem ser
indiferentes aos presos políticos e às suas sentenças punitivas. E só por
ironia é que se vê ficarem muito ofendidos com a comparação entre Hong Kong e Barcelona,
eles que não mexeram uma palha sobre Hong Kong porque o seu anticomunismo pára
na EDP e na REN, e não têm muita autoridade para fazer essa distinção. O mesmo
com a “progressiva” e de “referência” comunicação social espanhola cuja
agressividade anticatalã é repulsiva. E o mesmo para a portuguesa.
E repetem-se argumentos absurdos. O argumento contra o referendo
então é o de máxima hipocrisia. O referendo não valeu porque correu sem qualquer
controlo. Não é inteiramente verdade, mas é natural que não tenha ocorrido em condições
ideais com a polícia a roubar as urnas, a ocupar lugares de votação e a bater
nos que queriam votar. Mas, se o problema foram as condições do referendo,
então que se faça outro em condições de liberdade e paz civil. Resposta: não,
não, nunca, jamais em tempo algum.
Eu sou um grande admirador de Espanha, da sua cultura, das suas gentes.
Li o Quixote mais de que uma vez e
não é por falta de vontade que não o leio outra vez. Tudo o que de grande
existe na história da literatura e da arte está nesse livro, de Ulisses a Leopold Bloom. O país
que “deu” este livro merece tudo, menos muita da sua política. Não é um país de
história fácil, como se viu na matança da guerra civil, de que o actual conflito
é demasiado herdeiro. Em política sempre foi dado a pouca tolerância e a muito sangue,
mas os seus grandes homens e mulheres nos últimos 200 anos foram-no exactamente
por contrariarem isso. Unamuno é um exemplo. É também por admiração e estima
por Espanha que escrevo isto.
Historiador
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