terça-feira, setembro 04, 2018

Direito à Vida Por Inteiro - Artes, Cultura

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“A gente não quer só comida”: o direito à arte e a uma vida por inteiro*

PEDRO RODRIGUES·TERÇA-FEIRA, 4 DE SETEMBRO DE 2018
O primeiro semestre de 2018 foi relativamente agitado no que diz respeito ao financiamento público da criação e da programação artísticas em Portugal. Quase tudo foi dito e escrito sobre o que se passou e eu arrisco apenas fazer aqui um brevíssimo resumo:
- manteve-se o sub-financiamento da actividade artística por parte do Estado;
- houve um ligeiro alargamento da consciência dessa realidade por parte da população;
- houve mobilização entre os profissionais do sector e houve mobilização popular;
- houve um inaceitável comportamento por parte do Governo (Primeiro-Ministro incluído) na gestão de todo o processo de revisão do Modelo de Apoio Público às Artes;
- houve posições claras e fortes por parte do Bloco e do PCP;
- houve ligeiríssimas conquistas, que não resolveram nenhum dos problemas que subsistem nesta matéria nem permitem satisfazer as necessidades do país.
- em suma, repetindo o grito a que milhares de pessoas quiseram dar voz em várias cidades do país a 6 de Abril, “isto não acaba aqui”. Isto não pode acabar aqui, nem assim.

Creio que importa, à entrada de um novo ano político e quando se prepara o último Orçamento do Estado feito por um Governo que temos ajudado a viabilizar, reflectir sobre o que continua a estar em causa em matéria de política pública para as artes, parte importante do universo mais vasto a que se convencionou chamar “Cultura”.
Entendo que, para além da escassez das condições materiais para o exercício da actividade cultural de serviço público que subsistem em Portugal – consequência directa do investimento público que sucessivos governos têm decidido não fazer – o problema mais sério (porque estrutural, duradouro e a agravar-se) é o facto de continuar a ser ambíguo o lugar que a Cultura (e em particular a Arte) deve ocupar na vida da comunidade e, em consequência, no conjunto das políticas públicas. É na prática ambíguo (ou irregular, se preferirem) o lugar em que colocamos a Cultura entre os direitos sociais pelos quais lutamos diariamente – mesmo à Esquerda, mesmo, às vezes, no Bloco de Esquerda.
Por trás de um aparente (mas cínico e muitíssimo frágil) consenso sobre a importância da Cultura, subsiste no debate político, partidário e mediático uma confrangedora falta de discussão sobre as bases em que se funda este direito. Reflectir sobre elas, discutindo e divergindo onde tivermos de divergir (em particular com quem está à nossa Direita), parece-me essencial para que possamos finalmente construir algo de verdadeiramente transformador.

Concentremo-nos nas artes, campo da Cultura a vários níveis exemplar do que se passa com outras áreas relativas à produção e partilha de conhecimentos. Porque é tão importante para a democracia a disseminação do acesso às artes, quer ao nível da criação quer da fruição? Porque é tão importante que esta fruição da cultura, estabelecida como direito universal na Constituição que ainda nos rege, implique uma atitude activa, crítica, reflexiva por parte das cidadãs e dos cidadãos, contra o rolo compressor e homogeneizador que nos procura transformar em meros consumidores de formas, modelos e conteúdos impostos pelo mercado e pelos seus poderes?
A dificuldade em respondermos de forma simples, clara, directa e facilmente compreensível pela generalidade da população inibe-nos com frequência de respondermos aos ataques do liberalismo com a mesma firmeza com que respondemos noutras áreas, igualmente sob ataque cerrado e contínuo, como bem sabemos. Pior, tem-nos inibido, à esquerda, de aprofundarmos a reflexão e a construção da proposta transformadora, em consonância com a sociedade que queremos, com o país queremos. Demasiadas vezes também nós nos ficamos – nos discursos e na prática política – pela mera superfície da questão, sem que nos consigamos libertar das regras do jogo que nos são impostas, contrárias ao interesse público.

É realmente uma luta difícil. Sob um certo ponto de vista, mais difícil do que na Saúde, na Protecção Social, na Educação. Num país como Portugal, em que apesar de tudo subsistem traços de social-democracia:
- é consensual que quem está doente deve ter acesso a cuidados médicos;
- é consensual que devem ser garantidos tecto e comida a quem não tem meios de subsistência;
- é consensual que toda a gente tem o direito (e a obrigação) de aprender a ler e a fazer contas (até o mercado precisa disso).
Apesar dos ataques que afectam estas áreas essenciais da nossa vida colectiva e das limitações com que nos confrontamos a toda a hora e que a toda a hora denunciamos e combatemos, nestes campos ainda fazemos a luta, por paradoxal que possa parecer, numa situação de vantagem. A vantagem de que toda a gente sabe que temos razão, contra a qual se opõem apenas o estafado argumento da falta de meios ou a vontade de dar dinheiro a ganhar a privados na prestação destes serviços públicos. A vantagem de estarmos a falar de direitos sociais que felizmente conseguimos (também é mérito nosso, da esquerda que por eles lutou) que a generalidade da população sentisse como seus, depois do 25 de Abril. 
Na Cultura não é assim. Será por isso – adianto como primeira hipótese – que tem sido tão fácil cortar no financiamento público às artes aos primeiros sinais de austeridade e manter a parcela do Orçamento do Estado dedicada à cultura em níveis tão baixos, tanto em termos absolutos como relativos; será por isso que é tão difícil aprofundar a discussão – do outro lado temos quem precisamente não quer que as pessoas sintam que têm este direito e esta necessidade, que não lutem por ele; será por isso que os poderes (políticos e mediáticos) tantas vezes tratam os profissionais das artes ora como figuras decorativas, ora como pedintes, ora como crianças que não entendem as dificuldades de quem governa; será por isso que mesmo os nossos programas (apesar de se diferenciarem de forma muito significativa dos que são feitos à nossa direita) não têm sido capazes de assumir em pleno o potencial transformador e emancipatório de uma sociedade em que o direito à arte está realmente a par dos restantes direitos sociais.
É por isto que nesta área a luta é tão exigente e os trabalhos redobrados. Ao mesmo tempo que lutamos pela prestação de níveis mínimos de serviço público, estamos ainda – 44 anos depois de Abril – a lutar pelo reconhecimento de um direito.
O contacto regular com diferentes formas de expressão artística – literatura, cinema, música, dança, teatro, artes visuais, entre outras – enriquece a nossa capacidade de ler o mundo e de imaginar e construir alternativas; reforça os instrumentos de que dispomos para atribuir valor e sentido aos espaços e aos contextos sociais em que vivemos; estimula o pensamento crítico e a curiosidade; aumenta a capacidade (e a vontade) de comunicarmos com o outro e com a diferença; assume-se como campo propício à realização dos indivíduos, desafiados a identificarem, exercitarem, desenvolverem e partilharem as suas capacidades intelectuais; é fonte e veículo de conhecimentos plurais; auto-reproduz-se, propaga-se com facilidade em terrenos férteis ou minimamente preparados e raramente seca depois de enraizado; é, frequentemente, causa de felicidade para quem cria e para quem acede ao resultado.

É aqui – e não em eventuais retornos financeiros, contributos para o PIB, promoções dos territórios ou sequer na integração social de minorias mais ou menos desfavorecidas – que reside o papel essencial da Arte (e da cultura, em geral). É aqui que reside o potencial transformador e emancipatório das artes e o contributo imprescindível para o aprofundamento da democracia e da participação das cidadãs e dos cidadãos na vida colectiva.
É aqui, portanto, que reside o interesse público da Arte e a necessidade de o Estado assegurar a prestação de um serviço público nesta área, seja directamente através das suas instituições (bibliotecas, museus, monumentos, teatros nacionais, estruturas públicas de criação artística, equipamentos culturais nacionais e municipais, entre outros), seja através da contratualização com estruturas e indivíduos da sociedade civil (que faz particular sentido no caso das artes, dada a heterogeneidade e a pluralidade de vozes e expressões que é necessário assegurar).
É por isto (e não porque os artistas precisam de viver ou porque supostamente têm capacidade de fazer muito barulho) que um Orçamento do Estado em que a cultura representa pouco mais de 0,1% é uma vergonha e nos afasta da sociedade que desejamos, pela qual temos lutado e pela qual nos propomos continuar a lutar.
Ter, como eu tenho e vós certamente também, a consciência de que nada disto é novo é muito frustrante. Mas acredito que reavivar esta consciência, desde logo entre nós, é um pressuposto indispensável para que nos mantenhamos mobilizados e combativos.
Até porque a ofensiva liberal sobre um direito cujo reconhecimento universal nunca atingimos produziu riscos novos, a que é preciso estar atento.

Gostaria de chamar a atenção para três desses riscos, que proponho que debatamos já de seguida:
1. a retórica vazia
António Costa prometeu para 2019 o “maior orçamento da cultura de sempre”. Conhecemos a contradição entre o que prometia o programa do actual Governo e o que foi feito nestes três anos, sem nenhuma mudança significativa na forma de enquadrar e articular a cultura no conjunto das políticas públicas. Lembramo-nos dos títulos de jornais e da forma paternalista e ofensiva como o Primeiro-Ministro se dirigiu ao país, numa triste “carta aberta”, tentando esvaziar a contestação popular. Percebemos que os mecanismos de mercado (incluindo a sua tendência para a massificação e a homogeneização de conteúdos) funcionam em força nos meios de comunicação e que na esmagadora maioria das vezes isso não só não é coincidente com o interesse público como se opõe a ele, em nome de interesses e lucros particulares.
Não se trata já apenas de desconfiar das palavras bonitas que em momentos de crise responsáveis institucionais vêm publicamente dizer para acalmar os ânimos. Trata-se de assumir que quem governou o país nos últimos quarenta anos não quis colocar a cultura no centro do desenvolvimento do país e que continua a caber à esquerda lutar por isso.
2. o nevoeiro orçamental
Faço parte do Manifesto em Defesa da Cultura e defendo que o mínimo aceitável para o orçamento da cultura é 1% do Orçamento Geral do Estado. Trata-se de uma marca simbólica, que trabalha em duas frentes: ajuda a evidenciar que a realidade que temos tido se mantém muito abaixo deste mínimo; lembra que qualquer política pública digna desse nome implica, para ser levada a sério, uma dotação orçamental que não nos envergonhe e nos tome por estúpidos.
Nenhuma das pessoas que defende este mínimo orçamental ignora, contudo, que a radical alteração de que o país precisa na forma de encarar a cultura está longe de se esgotar na questão orçamental. O aumento do orçamento é essencial para essa transformação mas há muito mais a fazer na construção de uma política cultural que vise realmente a democratização do acesso à arte. Entre vários outros aspectos, destaco a necessidade de articulação com a Educação e com outras formas de produção e transmissão de conhecimentos; a atenção à descentralização e à correcção de assimetrias; a coerência e a sustentabilidade das medidas adoptadas (com repercussões directas, por exemplo, nos mecanismos de financiamento público criados pelo Estado); a valorização e a divulgação das actividades artísticas, entendidas em sentido lato (que vai desde os meios de divulgação propriamente ditos até à forma como responsáveis políticos publicamente se referem aos agentes culturais e ao trabalho que realizam).
Tenho as maiores dúvidas de que seja verdade que o orçamento do Estado para a cultura em 2019 venha a ser o maior de sempre. Se não for verdade, é mentira o que António Costa anda a dizer há dois meses e que ainda agora reafirmou, na rentrée do PS. Mas já nem é isso o mais importante. O importante é sabermos que, mesmo que em ano de eleições e no fim do mandato venha a haver algum aumento visível, ele não só vem tarde como vale de pouco se não for acompanhado de outras políticas.
3. a instrumentalização e o condicionamento
Da “cultura-flor-na-lapela” aos “artistas do regime”, a cultura é há muito alvo de diferentes tentativas de instrumentalização e a todas tem, apesar de tudo, resistido.
Nos últimos anos, contudo, duas ameaças sérias têm vindo a esconder ou a subverter ainda mais os fundamentos do interesse público das actividades artísticas. A primeira é a do turismo ou – na novilíngua dos financiamentos comunitários – a da “promoção do território”. Com a escassez de fundos específicos para a actividade cultural e atendendo ao que parece ser o novo-velho desígnio salvífico do país, cada vez mais artistas e projectos artísticos são atirados para as oportunidades de financiamento que vão abrindo para servir o turismo. Teoriza-se, até, sobre o papel importante que a cultura pode ter na promoção dos territórios, das cidades, do interior, do país. Tem-no, de facto, mas apenas enquanto não for especificamente criada para isso. A partir do momento em que o é, particularmente quando falamos de expressões artísticas, perde a sua marca de originalidade, a sua capacidade diferenciadora, desafiante e geradora de perplexidades, para se transformar num instrumento de propaganda ou num produto de entretenimento. Mais ou menos criativo, com maior ou menor qualidade, mas afastado do contributo essencial que é suposto oferecer-nos.
A segunda ameaça é construída a partir de uma ideia cuja validade me parece inquestionável: a de que a cultura e o contacto regular com as diferentes expressões artísticas contribuem para promover a inclusão social. O problema é que na maior parte das medidas que têm sido postas em prática (materializadas em concursos e programas de financiamento europeus, nacionais ou municipais) se entende essa qualidade como um fim em si mesmo das actividades artísticas. Chega-se ao ponto de, em concursos públicos de apoio à criação artística, promovidos pelo Ministério da Cultura, privilegiar os que abordem determinados temas ou se dirijam a determinados segmentos da população, condicionando à partida a liberdade de criação dos artistas nacionais. Talvez estejamos a conseguir ajudar a resolver alguns problemas sociais através de práticas artísticas, mas enquanto isto for feito à custa do que devia ser o eixo central de uma política pública para a cultura e para as artes, estamos sobretudo a empobrecer a oferta à disposição da população e a limitar ainda mais a efectiva democratização do direito à arte.
O painel em que estamos cita no título um verso de Arnaldo Antunes, ainda do tempo dos Titãs: “a gente não quer só comida / a gente quer comida, diversão e arte”.
Continua a ser preciso reivindicar o direito a uma vida por inteiro, recusando as metades (cada vez mais pequenas) que nos querem conceder.
Creio que é essa a luta que é preciso continuar a fazer.
* Comunicação apresentada no painel “A gente não quer só comida: Porque incomoda tanto o direito à arte?”, no âmbito do Forum Socialismo 2018, org. Bloco de Esquerda, Leiria, 31 de Agosto a 2 de Setembro de 2018.

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