“…
a
maior aventura humana é dizer o que se pensa.”
Raduan
Nassar
Menina
a caminho (p. 75)
Em Vila Franca de Xira, há uma
passagem de nível que dá acesso ao Cais, um espaço em processo de
resgate para o lazer dos cidadãos. O tráfego ferroviário é
intenso, e a travessia tem de ser feita com cuidado. De há muito a
empresa proprietária aboliu vigilante humano no local.
É verdade que muitas pessoas ainda não interiorizaram as cautelas redobradas que a localização da passagem exige - a visiblidade é escassa, e passam aqui comboios de alta velocidade. Existem cancelas automáticas, e uma
alternativa de passagem aérea, mas a campainha de alarme continua a
ser necessária.
Sendo necessária e útil, a solução da campainha de alarme nem por isso tem de
ser estúpida e desumana.
Não estamos no deserto, nem numa zona rural desabitada. Trata-se do coração de uma cidade. Os níveis de ruído são poluição sonora que devem respeitar esta condição. A lei exige-o, a saúde pública valoriza-o, o bom senso recomenda-o.
Junto à passagem, moram pessoas. Poucas que sejam, mas pessoas. Uma delas, durante mais de dois anos lutou para
que a campainha tivesse um som menos estridente. Não conseguia
dormir, e a sua saúde agravou-se. Correu Seca e Meca, de papel na
mão, de email em riste, de conversas ao vivo. Respostas surdas, ou
nem isso. O Nuno Bico era um combatente, e porfiou. Noutro dia
falarei mais sobre o Nuno, amigo desde a infância. Hoje só o
menciono neste caso. Esgrimiu com a lei, a saúde pública, a
decência, a simples racionalidade. A sua saúde agravou-se. Morreu
em 2017. Dias depois da sua morte, a REFER reduziu finalmente o som
da campainha. Custou a engolir a aparente ironia, mas a suavidade do
toque, que não perdeu o seu efeito de aviso, consolou-nos a gratidão
ao Nuno.
A luz do cais sorri de outra maneira, e
quem por ali encosta a cabeça no travesseiro, trabalha diariamente ou procura descanso e lazer ganhou um pouco mais de
paz dia e noite. Por fora e por dentro, para pensar melhor e escutar melhor. O direito ao silêncio faz parte do direito à liberdade.
Parecia uma história árdua, mas de final com um conforto e uma ténue confiança na democracia e na derrota da estupidez e da prepotência,
Não era.
Passados alguns meses, alguém na REFER
deve ter decidido que o som tinha de voltar aos níveis
insuportáveis.
De repente, o Verão ficou mais escuro,
e o rio Tejo engrossou de mágoa e de revolta.
Há quem ache que estas coisas são
menores. Eu sei que não são. Por muitos "pormenores" destes é Portugal conhecido por má aplicação de fundos financeiros - a qualidade dos grandes investimentos é sabotada pelos pequenos poderes e a sua ignorância, incompetência ou maldade.
Há quem ache que não há nada a
fazer. Não concordo.
Há quem ache que não é só esta a dificuldade que a passagem de nível acentua... Lembram a irregularidade do piso, a demora por vezes de muitas dezenas de minutos até ficar livre, a pouca confiança que a população tem na alternativa para atravessar a pé (passagem aérea junto à Fábrica das Palavras) por haver memória de avarias frequentes noutros elevadores sobre a via férrea na cidade. Concordo com os argumentos, e até posso ir adicionando outros, mas não os acho razões suficientes para adiar a questão.
A questão aqui é simples: conseguir que quem anulou a decisão sensata, embora tardia, de ajustar o nível de som da campainha corrija o erro. Se puder pedir desculpas, ficava bem.
A questão aqui é simples: conseguir que quem anulou a decisão sensata, embora tardia, de ajustar o nível de som da campainha corrija o erro. Se puder pedir desculpas, ficava bem.
Apelo a todos que o possam fazer que
barafustem, escrevam, toquem campainhas nos canais da decisão cega,
até que se reponha o nível sonoro decente do alarme.
Nunca esquecida, a questão da alteração da linha de caminho de ferro como barreira a outra qualidade de vida na cidade fica para outra publicação.
Maria José Vitorino
2017.07.16
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