quarta-feira, março 16, 2016

Utopia, 1516- Educação é fundamental



Os utopianos admiram-se de que seres razoáveis possam se deleitar com a luz incerta e duvidosa de uma pedra ou de uma pérola, quando têm os astros e o sol com que encher os olhos.Encaram como louco aquele que se acredita mais nobre e mais estimável só porque está coberto de uma lã mais fina, lã tirada das costas de um carneiro, e que foi usada primeiro por este animal. Admiram-se que o ouro, inútil por sua própria natureza, tenha adquirido um valor fictício tão considerável que seja muito mais estimado do que o homem; ainda que somente o homem lhe tenha dado este valor e dele se utilize, conforme seus caprichos.Espantam-se também que um rico, de inteligência de chumbo, estúpido como uma acha de lenha, tão tolo quanto imoral, mantenha em sua dependência uma multidão de homens sábios e virtuosos, apenas porque a sorte lhe deixou algumas pilhas de escudos. Mas, dizem, a fortuna pode traí-lo e a lei (que tanto quanto a sorte precipita freqüentemente o homem do pináculo ao lodo) pode arrancar-lhe o dinheiro, fazendo-o passar às mãos do mais ignóbil de seus lacaios. Então, este mesmo rico se sentirá feliz em passar também, na companhia de seu dinheiro, a serviço de seu antigo criado.Há uma outra loucura que os utopianos detestam ainda mais, e que dificilmente concebem, é a loucura dos que rendem homenagens quase divinas a um homem porque é rico, sem serem, entretanto, nem seus devedores nem seus súditos. Os insensatos sabem, não obstante, como é sórdida a avareza desses Cresos egoístas; sabem, perfeitamente, que nunca terão um vintém de todos os tesouros destes últimos. 
Nossos insulares adquirem semelhantes sentimentos, parte no estudo das letras, parte na educação que recebem no seio de uma república cujas instituições são formalmente opostas a todas as nossas espécies e gêneros de extravagância. É verdade que um número muito pequeno é dispensado dos trabalhos materiais, entregando-se exclusivamente à cultura do espírito. São, como já disse, aqueles que, desde a infância, demonstraram aptidões raras, um gênio penetrante, vocação científica. Mas nem por isso se deixa de dar uma educação liberal a todas as crianças; e a grande massa dos cidadãos - homens e mulheres - consagra, cada dia, seus momentos de repouso e liberdade aos trabalhos intelectuais. 
Os utopianos aprendem as ciências em sua própria língua, rica e harmoniosa, intérprete fiel do pensamento; ela é difundida, mais ou menos alterada, sobre uma grande extensão do globo.Antes de nossa chegada, os utopianos nunca tinham ouvido falar nesses filósofos tão famosos no nosso mundo; entretanto, fizeram as mesmas descobertas que nós, no terreno da música, da aritmética, da dialética, da geometria. Se igualam em quase tudo os nossos antigos, são bastante inferiores aos dialéticos modernos, porque ainda não inventaram nenhuma dessas regras sutis de restrição, amplificação, suposição, que se ensinam à juventude nas escolas de lógica. Ainda não aprofundaram as idéias segundas; e, quanto ao homem em geral, ou universal, segundo a gíria metafísica, este colosso, o maior dos gigantes, que nos mostram aqui, ninguém na Utopia pode ainda percebê-lo. Em compensação, conhecem de uma maneira precisa o curso dos astros e o movimento dos corpos celestes. Imaginaram máquinas que representam com grande exatidão os movimentos e as posições respectivas do sol e da lua e dos astros visíveis acima do seu horizonte. Quanto aos ódios e às amizades dos planetas e às demais imposturas de adivinhação pelo céu, nem mesmo em sonhos disso se ocupam. Sabem prever, por indícios confirmados por uma longa experiência, a chuva, o vento e as outras revoluções do ar. Fazem apenas conjecturas sobre as causas desses fenômenos, sobre o fluxo e o refluxo do mar, sobre a composição salina dessa imensa massa líqüida, a origem e a natureza do céu e do mundo. Seus sistemas coincidem em certos pontos com os dos nossos antigos filósofos; e em outros, se afastam. Mas, nas novas teorias que imaginaram, há dissidências entre eles, como entre nós. 
Em filosofia moral, agitam as mesmas questões que os nossos doutores. Procuram na alma do homem, no seu corpo e nos objetos exteriores, o que pode contribuir para sua felicidade; perguntam, procuram saber se o nome de Bem convém indiferentemente a todos os elementos da felicidade material e intelectual, ou só ao desenvolvimento das faculdades do espírito. Dissertam sobre a virtude e o prazer; mas a primeira e principal de suas controvérsias tem por fito determinar a condição única, ou as diversas condições da felicidade do homem. Talvez possais acusá-los de propender demais para o epicurismo, porque, se a volúpia não é, para eles, o único elemento da felicidade, é um dos mais essenciais. E, fato singular, invocam em apoio dessa moral voluptuosa a religião tão grave e severa, tão triste e rígida. Têm por princípio não discutir jamais sobre o bem e o mal, sem partir dos axiomas da religião e da filosofia; de outra maneira, temeriam raciocinar em bases falhas e edificar falsas teorias.
Thomas More, Utopia (1516). Pg.35. Tradução em português do Brasil. Texto integral em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000070.pdf


Sem comentários:

Ladrões de Bicicletas: A tirania do mérito

Ladrões de Bicicletas: A tirania do mérito : « Quem alcançou o topo, passou a acreditar que o sucesso foi um feito seu, uma medida do seu ...