domingo, março 15, 2020

Vírus & democracia


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Charge de Laerte Coutinho in Forum, 25.02.2020

Na China, a capacidade de controlo de Xi Jinping vai ao ponto de conseguir medir a temperatura dos distribuidores de comida a cada duas horas e, na embalagem, é obrigatório que constem os valores da temperatura de quem confeccionou a refeição. Os passos das pessoas são controlados por uma aplicação no telemóvel. Em contrapartida, cada cidadão tem, por exemplo, garantidas cinco máscaras 
gratuitas por semana. Por oposição ao exemplo italiano e ao dos Estados Unidos, com Donald Trump a recusar responsabilizar-se pelo que quer que esteja relacionado com “o vírus estrangeiro” e incapaz de tornar acessíveis os cuidados de saúde de que os norte-americanos precisam, não falta já quem questione se uma ditadura não estará mais bem preparada para conter o vírus. “Se se confirmar o aparente sucesso que a China está a ter a controlar isto, por contraste com países democráticos, mais gente pode começar a concluir que, afinal, o autoritarismo pode dar jeito, mesmo que em sacrifício de alguns direitos”, preocupa-se Aguiar-Conraria. O facto de a China ter, por via do seu desempenho económico, “deitado por terra aquela ideia dos anos 1980 e 90 de que eram os países com democracias mais sólidas que tinham melhores performances económicas”, não ajuda a pôr travão a tais ameaças aos regimes democráticos. 
“O perigo de as democracias saírem fragilizadas desta pandemia é enorme”, vaticina também Manuel Loff.“O que é que disse [o deputado do CDS] Telmo Correia? Que é preciso uma ‘voz de comando’! E de onde é que isto está a sair? Está a sair de onde sempre esteve: durante a II Guerra Mundial, a questão, mesmo nas democracias opositoras do nazismo, era se uma ditadura não seria mais eficaz a mobilizar os seus soldados, a dar-lhes moral para enfrentar os inimigos. Em pleno século XXI, está a voltar à superfície este elogio permanente do autoritarismo”, compara.O que mais preocupa o historiador é perceber que, à boleia da covid-19 tal como à boleia da crise dos refugiados, grassa a ideia de que a complexificação das relações e dos problemas sociais e políticos requer um “comando forte”. “Essa crítica nacional-populista ao funcionamento da democracia, que não dispensa uma retórica oportunista de mais democracia, foi o que levou Bolsonaro ao poder e o que deu força o Orbàn na Hungria e a Putin na Rússia”, insiste para sustentar que, ao reavivar medos ancestrais, a covid-19 “reforça discursos de natureza messiânica ou autárcica, que, perante um vírus que vem de fora, defendem que o país tem de se fechar sobre si próprio”. E, submergidas pelo pânico social, as pessoas tornam-se permeáveis à erosão dos seus direitos. 
“A lógica de que os países têm de fechar o contacto com os outros começou em 2017, a seguir à tomada de posse de Trump, e, do dia para a noite, o passo foi dado”, situa Loff, referindo-se à decisão do Presidente norte-americano de “fechar” os voos provenientes da Europa. A Itália, por seu turno, “isolou-se a si própria, num estado de emergência com efeitos de natureza policial”, diz ainda, convencido de que, “criados os mecanismos legais, estas medidas terão impactos duradouros”.“Se incorporarmos este estado de emergência dentro das nossas cabeças, ninguém se lembrará de ir perguntar ao Estado quando é que isto acaba. E efectivamente os processos de securitização de áreas da nossa vida colectiva e individual só têm sucesso quando a sociedade os entende como naturais”, prossegue o investigador, subscrevendo as teorias do filósofo italiano Giorgio Agamben, que no livro Estado de Excepção (Edições Setenta, 2018) conclui que o mundo vive em permanente estado de excepção desde os ataques terroristas de 11 de Setembro. “A ideia que perdura desde então”, conclui Loff, “é que sempre que há um ataque temos de suspender a Declaração Universal dos Direitos Humanos, detendo e vigiando pessoas sem necessidade de qualquer autorização judicial”. No caso português, “é sintomático que uma das primeiras discussões suscitadas pela covid-19 visava perceber se, à luz da Constituição, o Estado pode ou não impor determinadas práticas de reclusão domiciliária”, recorda Aguiar-Conraria, para acrescentar que, se se concluir que não tem, “de certeza absoluta que, bem ou mal, na próxima revisão constitucional isso é alterado”.E assim "ficaremos com mais um exemplo de como as crises são aproveitadas para erodir direitos e tornar as sociedades menos liberais”.
in O vírus do medo já contagiou as democracias, Público, 15.03.2020

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