sábado, abril 13, 2019

Aspirar ao coração, exorcizarmo-nos pelo sonho, ser grato à Terra, seguir ao lado do nosso irmão




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«The action is complex, agitated, there isn’t a true focus for the narration and the whole scene is defined by a strong chiaroscuro (…) It’s noteworthy that all the characters are portrayed as common people. That’s because Caravaggio didn’t believe in the formal charity of upper classes, but only in the spontaneous generosity of people towards other people. (Here we can see) the visual and emotional intensity, the strong naturalism and the extreme expressiveness.»

Uma atitude plástica indomável
e arrebatamento rítmico nas figuras,
eis o que me interessa transmitir:
sou panteísta,
e sei como nas cores há um luxo físico
que torna o que é palpável
imaterial
– de modo que o que faço
é da rua que vem,
para que se transfigure em dom de imanência
e a alma e o espírito se cumpram nos pigmentos
para que tudo seja obra compassiva,
como um enigma de arrebatamento.

A minha vida é a cor
– e o recorte que o relevo da luz
lhe introduz
serve para que o universo vibre
e uma tensão grandíloqua se estabeleça,
entre a detonação da tela
e o espectador,
num repto total,
esmagador.
Ouso o fascínio,
mas, mais do que o fascínio,
aspiro ao coração
dos que vêem a tela interiormente,
sendo que os olhos
acumulam sortilégio
para que o entendimento desmorone
a falsidade que nos cerca e mata.

Eis a encomenda:
um quadro de grandes dimensões
que patenteie
as sete obras de misericórdia corporais,
dando relevo aos justos, obviamente,
mas também aos pecadores,
já que cada um deles é cada um de nós,
se a nossa prudência souber dizê-lo
de modo a não ardermos na fogueira.
Deu-me trabalho, o esboço:
a caridade existe,
mas é tão raro vê-la
que um pintor não sabe onde encontrar
modelo adequado,
mesmo que vá de igreja em igreja
a cuidar que, de repente,
encontra exemplo para a missão.

Tentei de tudo. Tentei, até, de mais.
Mas os dias passavam, e as noites,
e não me satisfazia com o que via,
os palácios a abarrotar de nobres
sem magnanimidade, e os pobres
sempre mais pobres, a morrer à míngua.
O mundo, agora, é só hipocrisia.
E, por isso mesmo, a minha regra
é não ter regra nenhuma
– em busca da brandura
vou de sítio em sítio,
a procurar um sentido nos sentidos,
ou alguém que não difame,
ou que não roube.
Só posso pelo sonho exorcizar-me;
mas o facto é que na rua é que anda tudo
– abrindo bem os olhos, em lida
extenuante, mas de grande prazer,
basta só olhar em volta e ver:
e ver é uma arte que faz toda a diferença.
E assim foi que vi os anjos nesta esquina,
e uma profusão de personagens
a perfazer o périplo das obras
misericordiosas:
a visitar os presos,
a dar de comer a quem tem fome,
a enterrar os mortos,
a cuidar dos enfermos,
a vestir os nus,
a dar de beber a quem tem sede,
a dar pousada aos peregrinos.

Olhando o quadro, agora pronto,
exposto na igreja do Pio Monte della Misericordia,
em Nápoles,
entendo que é pelo arrojo
que vou bem
– e fico impressionado
pelo que faço dos temas,
e como os meus impulsos artísticos resultam
em explosões categóricas de beatitude
de que até eu me assombro.

Toda a beleza é transcendência,
afirmo, de mim para comigo.
No meu tempo poucos haverá
que isto entendam, embotados
que estão de dogmas e preceitos
em que se relega o mundo
e nada vive como a vida é.
Martinho tira a capa e dá-a a um pobre.
Uma jovem mulher oferece o seio
a um velho preso da sua miserável condição
matando-lhe a fome e aliviando-o
do desgaste do castigo.
Um diácono clemente
manda que os coveiros
abram a terra e sepultem os cadáveres.
Um jovem, em tronco nu, ampara os doentes.
Um Sansão, sequioso, dessedenta-se com água
que alguém pôs no maxilar de um asno.
E Santiago aloja os peregrinos
com a ajuda de um almocreve adolescente.

Eis o meu quadro, a que juntei,
sobre a multidão,
uns anjos
para que se saiba
que não são dos anjos as tarefas dos homens,
e que o que é possível pode até tocar-se
se estendermos a mão ao nosso semelhante
– mesmo que ninguém veja,
mesmo que fique no segredo dos anjos a nossa acção,
mesmo que a partilha seja, apenas, nossa
e que nada, nem ninguém, nos agradeça
o gesto,
o acto.


Chamo-me Michelangelo Merisi Caravaggio
e ignoro
se sou cristão, ou não.
No caso, interessa pouco quem eu sou.
Sei é que deixo nesta terra
uma pequena herança
de luz
e movimento
e cor
que me fará feliz
se os homens se lembrarem
que pior que o esquecimento é a ingratidão,
e que ser ingrato nesta terra é não estar ao lado
de quem na vida vai ao nosso lado
e é nosso irmão.

Amadeu Baptista
Sobre um dos quadros de Michelangelo Caravaggio, componente de “Os Sete Trabalhos de Misericórdia”


Grata à Isabel Duarte que mo deu a descobrir,  a Caravaggio e à Mae West que nos inspiram.

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