Brasileiros: O senhor também mencionou o perigo de entregar a máquinas, como televisão, computadores e tablets, a tarefa de contar histórias às crianças. Por que isso é perigoso e como reencontrar o tempo para contar histórias?
Mia Couto: Acho que é perigoso porque esse contar de histórias não é simplesmente uma transmissão de alguma coisa que já está feita. No momento em que se conta a história a alguém, não há ali uma escuta mecânica, mas sim qualquer coisa que cria, sobretudo, a construção de uma relação entre pessoas e, obviamente, a máquina não pode fazer isso. A construção dessa relação interpessoal e do apetite por ela marca: é como se a história existisse só para criar essa rede, essa capacidade de estarmos juntos, de escutarmos, de sermos outros. Claro, há um momento em que a máquina pode estar ligada e cumpre a função de “anestesiar" a criança, mas falo é da ausência do resto. A máquina passa a ser a exclusiva ligação com a fantasia, e a criança é colocada desde o princípio só como consumidora de uma imagem que já está feita em definitivo e ela pode voltar e ver da mesma maneira mil vezes. Mas quando ela pede ao pai, à mãe ou a alguém que lhe conte a história, ela nunca é repetida completamente. Há ali uma recriação, e a criança percebe que esse momento a torna também criadora.
(...)
Brasileiros: Por que a escolha por esse caminho chamado literatura?
Mia Couto: Não escolhi a literatura, escolhi a escrita, que é provavelmente outra coisa. A construção que fizeram da escrita me parece que a complicou muito, a intelectualizou e construiu um edifício com vários andares e hierarquias. Quando começamos a escrever e a querer usar a escrita do ponto de vista criativo, estamos muito longe da escolha dessa grande construção e dessa grande estrutura que é a literatura. Eu sou salvo por ser várias coisas, e sempre que tenho de enfrentar “a" literatura, que depois se manifesta nessas coisas muito solenes dos congressos e das conferências, puxo logo o chapéu de biólogo… Esse universo me apraz, mas na maior parte das vezes é uma grande chatice. Estão ali os grandes estudiosos, os filósofos, os próprios escritores que, algumas vezes, dão demasiada importância a si mesmos e àquilo que fazem, e estou sempre a pensar qual o momento que tenho para escapar (risos). Esse discurso parece uma arrogância disfarçada de humildade, mas na verdade não sinto que pertenço a essa construção. Sou mais de uma pequena tribo que é a dos contadores de histórias, e podem fazer isso mesmo sem usarem da escrita.
Mia Couto - Mia Couto: A tribo de contadores de histórias | Fronteiras do Pensamento
Sem comentários:
Enviar um comentário