domingo, junho 19, 2005

Baixinho

Eu não senti nada na morte de Cunhal. O dirigente histórico, o partido, morreram para mim há muito tempo. Quando os comunistas reconheceram os crimes do estalinismo Kundera disse-lhes que não bastava que se arrependessem, era preciso que, como Édipo, vazassem os olhos e fossem para o deserto. Ora os comunistas portugueses mostraram sempre uma total insensibilidade à natureza criminosa do estalinismo e das suas manifestações. Sempre prontos a perdoar, em nome da dureza da luta de classes, sempre mansos para a tentativa de reabilitação histórica do herói da segunda guerra. Sempre confundindo firmeza ideológica com catecismo.
Mas, na morte de Cunhal, ouvi o grito das multidões nas ruas. Dizia, aos senhores deste mundo, que outro mundo é possível. Aos homens do cálculo que a Sophia detestava, aos que traçam a régua e esquadro a nossa vida, sempre prontos a salvar a economia e a nação, a interpretar a história, a explicar a racionalidade da opressão, a soprar aos desempregados e aos excluídos que devem ter paciência, a insinuar que a desigualdade é merecida e está inscrita na nossa inferioridade genética. O grito da rua irritou os comentadores inteligentes que há anos se apoderaram das colunas de opinião da imprensa, da rádio e da televisão e construíram a nossa ignorância. O mundo tem-lhes corrido de feição. Derrotaram os inimigos, uns broeiros, aliás, quase todos incultos, incapazes, carentes de argumentos e fluência. Estavam tão satisfeitos, lá de onde se via o fim da história. E de repente aquele rumor. Parecia o PREC contado às criancinhas. Havia muitos velhos, eu sei. Mas no presente, no futuro, vai haver muitos velhos. Talvez não tenham dado conta. Há muitos velhos em casas, lares, em quartos. À espreita. Há aldeias quase só de velhos, e nos pinhais ardidos, velhos habitam casas como barcos. Quando as ruas das cidades dormitório se esvaziam, os velhos tomam conta das crianças pequeninas e contam-lhes, baixinho, uma história ainda secreta.


Transcrevo do Mal
Sei que para muitas crianças os sussurros ao adormecer surgem do seu coração, e não de gerações anteriores, interditas no cruel e urbaníssimo quotidiano que as transfere de infantário para escola de casa sem pai ou sem mãe, ou só com um adulto. Para outras, a própria rua desapareceu, e entre portas brincam dentro de automóveis e carrinhas, espaços de sonhar ou sofrer como eram os passeios, as travessas, os becos, os quintais e os campos dos anos sessenta.
Mais valor têm ainda as histórias secretas que conseguem capturar, melhor ainda se directas em fala corrente e quente de carinhos e tremor de voz.
A comoção não se decreta, e poucos a dominam.
Na memória das crianças fica o único futuro possível. Nas pontes que com elas se fazem o derradeiro dicionário do entendimento. A ler baixinho, claro...

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