quinta-feira, fevereiro 20, 2020

As palavras em papel de seda - a propósito de eutanásia


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Obras Completas Maria Judite de Carvalho - Vol. 4.:  Janela Fingida | O Homem no Arame | Além do Quadro. Minotauro, 2019


As palavras em papel de seda
Podem ser assustadoras, as palavras. Podem magoar, ferir, matar até. Podem encher-nos de vergonha. Por isso o medo, o pavor que delas têm os nossos coraçõezinhos de pomba. E eis que as envolvemos em delicados papéis de seda e, de repente, é como se não existissem. É estranho, mas as coisas que significam, as terríveis coisas que significam, não nos assustam tanto. Porque são a vida, o inevitável, aquilo que sempre houve, nada a fazer. Agora elas, as palavras… Preferimos pois os doces eufemismos tranquilizadores. Estamos, de resto, preparados para tal atitude. Somos um povo eufemístico,  hospitaleiro e de brandos costumes. Entre muitas outras coisas.Basta ler jornais, ouvir rádio, ver-ouvir televisão. A quantidade de palavras lindamente embrulhadas no papel de seda chamado eufemismo... Claro que isto não é só nosso, chega-nos de muitos outros países. Países que lutam pela paz (fazendo guerras cuja origem é silenciada), Ministérios da Defesa (que são de ataque), gente de cor (em terra onde, diz-me, não há racismo), sei lá. Mas entre nós. E aqui estão os economicamente débeis, os culturalmente desfavorecidos, os subdesenvolvidos, quem vai chamar-lhes pobres de pedir ou ignorantes de tudo ou abandonados na vida? E os deficientes físicos e os invisuais e os que sofrem com os problemas da terceira idade? E os que morrem (falecem às vezes, são mesmo chamados à divina presença de Deus) vitimados pela doença-que-não-perdoa? Quantas vezes vemos uma família a quem acaba de morrer um ente querido, uma família que sofreu diariamente com essa morte lenta, e, com coragem, tropeçar de súbito, hesitar, baixar a voz ou recusar-se mesmo a dizer a palavra terrível que queima os lábios?
É, pelos vistos, muito mais difícil enfrentar a realidade do que as palavras. E se uma pessoa vier falar-nos de cancerosos, pobres, aleijados, cegos e velhos na miséria, arrisca-se a que fiquemos a pensar, quando se for embora, que é, na verdade, uma pessoa muito insensível. Enfim, arrisca-se a deixar-nos uma péssima impressão.
Maria Judite de Carvalho
O homem no arame, 1979

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