Imagem de Filipe Ferreira, daqui
Penso que o fenómeno que mostra estarmos numa época diferente é a desculturação – e que é maciça. Há 50 ou 60 anos, mesmo com muitos analfabetos e com uma vida quotidiana muito mais difícil nos aspectos vitais, existia uma ligação à terra que permitia haver uma cultura, haver raízes. E a cultura não só se massificou, como se desenraizou. Portanto há uma epidemia de amorfismo que, num aspecto, se assemelha com o que tínhamos na ditadura: parece que vivemos no meio de uma papa cinzenta. É a desculturação, a falta de assunto. Trata-se de uma característica geral da época da globalização do capitalismo, não é uma queixinha que estou a fazer em relação ao nosso país. Digamos que a estética pós-modernista é um resultado directo disso, é feita para alimentar essa visão do mundo que não é uma visão, é uma forma de cegueira. E por ter essa relação com os tais valores que não são os valores da Bolsa, não quero que esta conversa seja percebida como uma conversa amarga. Só que o mundo está diferente. Ainda não percebemos bem a gravidade do que está a acontecer de há 20 ou 30 anos para cá.A única coisa que vislumbro é que é preciso começar tudo de novo, mais uma vez, como o Ehrlich, e é preciso começar pelo que está perto, pelo que está em baixo, no chão. É um trabalho muito mais a partir das questões biológicas, animais, da sobrevivência, do medo, do prazer, das questões básicas. A estrutura de classes modificou-se imenso, mas não a forma de apropriação da mais-valia pelo capital. E hoje o que há é uma visão da arte que corresponde perfeitamente ao capitalismo pós-II Guerra Mundial. Quando vemos a história do Van Gogh ou do Modigliani e comparamos com a rapariga que faz galos de Barcelos isso é uma amostra do trabalho do pós-modernismo. Deixou de haver ética na criação artística. Deixou de haver compromisso. Deixou de haver sangue. É raro encontrar-se uma obra, mesmo de menor qualidade estética, em que se sinta a preocupação de comunicar com o outro.
José Mário Branco, 2017
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