Julião Sarmento
"(...) eu lia, leio estes ou outros versos de A Faca Não Corta o Fogo, ou de qualquer outro livro de Herberto Helder, – e também o meu corpo, o corpo do leitor, da leitora, se abre pela boca, e se lhe raia a cara, perde o fôlego e respira de sôfrego, perde a fala quotidiana, dói todo, fica cego, desfaz os nós, alcançado pelo ar, abraçado, sob a música inquieta, inconjunta, pura. Ao corpo do leitor, da leitora, acontece o mesmo que aos corpos no poema – na mais profunda e inesperada mimesis do poema pelo corpo.O cravista holandês Bob van Asperen disse um dia, numa entrevista concedida à revista Goldberg:Uma execução musical experimenta-se. Nas boas interpretações, o ouvinte tem tendência para participar, e esta tendência ganha uma realidade física. Constatou-se cientificamente que, quando se ouve um canto, acontece algo na garganta, a garganta quase quer imitar o canto, e efectivamente tenta fazê-lo. É uma reacção física. (…) O ouvinte sente que algo dança dentro de si.Cito inúmeras vezes estas frases de Bob van Asperen. Elas dizem que não há o sujeito ouvinte e o objecto musical ouvido – mas que o sujeito é imediatamente acontecimento da música, possessão. Quem ouve o canto sofre metamorfoses nos seus órgãos. Quem ouve transfigura-se, o ouvinte é possuído.E se for também assim com a poesia? Se os poemas de Herberto Helder transfigurarem a carne de quem os lê? Se os versos insinuarem metamorfoses, e os órgãos – não só a garganta, mas também a boca, a cara, os dedos, o corpo todo – imitarem, automáticos, as formas ditas pelos versos? Se, em suma, cada poema der ao corpo do leitor a forma de um corpo novo, se o poema inventar no leitor lágrimas, silêncios, asfixias?Então talvez o nosso corpo não nos pertença, mas ao poema."Pedro Eiras
Breve nota sobre ler Herberto Helder | milplanaltos
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