«Dificilmente se acredita que os seus textos ainda existam, que estes livros não se apaguem. Pois, ao contrário do lugar comum onde se encontra a vã consolação, ao contrário da crença de que a escrita, trazendo glória, traz eternidade, há este sentimento, que é meu, de que para certa rara gente tudo foi uma única coisa. Não ocorreu uma separação e penso sempre que as ervas que devoram um mortal devorarão também a sua obra. Porque este é um dos casos em que a obra era o orgão vital, o que gerava visão, entendimento, medo e esperma.
Há pessoas assim cuja existência, cuja carne é matéria literária. Não falo já de qualidade. Falo, sim, da quantidade de poema que há num corpo. Da combustão que é feita de palavras em lugar de oxigénio. Falo daquele que, se não escreve, mata alguém. Daquele que não aceita um aparelho de cognição capaz de o proteger com o vulgar conforto do real. Que se educou para a alucinação. O que descreve o brilho intenso que há na noite e é, no entanto, a fonte do fulgor, dessa fosforescência com que os mortos que o tocam, de visita, o contaminam.
Dificilmente se acredita que os seus textos não tivessem ardido inteiramente, não se extinguissem com aquelas mãos que pegavam na insónia para os escrever.»
Hélia Correia, in Revista de artes e Ideias n.º 8, «O Medo», Coimbra: Alma Azul, 2006. p.51
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