quinta-feira, agosto 04, 2011

Matar o luto



Matar o luto

No Journal de deuil de Barthes, onde ele dá conta do luto pela morte da mãe dele, há mais apontamentos universais do que pessoais, como ele próprio suspeitava, apesar do medo de expor uma rara banalidade.

O livro saiu em 2009, mas só agora é que estou a lê-lo. Esta última, parva, frase é mais um exemplo do erro que a morte de uma pessoa corrige para sempre. Não são nem a altura nem o tempo que interessam: é o ser ou o não ser; o poder ler, mais do que o ter lido.

"Mal alguém morre, construções frenéticas do futuro (mudar móveis, etc.): futuromania". Barthes chama "futuromania" à culpa de pensar: "E agora? E agora, que ela morreu, que vou eu fazer?". Em vez de chorá-la, de permanecermos no passado, traímos a pessoa amada da maneira mais prática, mesquinha e futura: que vou eu agora (ou seja, depois) fazer? Onde vou eu viver?

No caso de Barthes, que vivia com a mãe, a traição futuromaníaca foi saber que não havia outro sítio onde ele poderia (continuar a) viver.

"Na frase "ela já não está a sofrer" a que coisa, a que pessoa é que "ela" se refere? O que é que pode querer dizer este presente do indicativo?"

Barthes mostra, num diário que é sublime, patético e banal, que pensar no futuro é desrespeitar não o passado, mas o presente interrompido. A mãe dele morreu. O amor dela por ele também. O amor dele por ela e pelo amor dela por ele continuou. É esse o luto; é esta a vida. Também tinham de morrer. Ele não sobreviveria se não as matasse.

Miguel Esteves Cardoso, in Público 04.08.2011

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